24 de jul. de 2011

Cara a tapa

Foto: Luciane Pires Ferreira

Poética da Alternativa

O espectador de “Cara a tapa”, o novo espetáculo da Vai! Cia. de Teatro, grupo responsável pelas produções "Agora Eu Era" e "Parasitas", não pode se privar de descobrir a "poética da alternativa", talvez, uma das sugestões mais interessantes dessa montagem. Sem deixar de aproveitar as situações descritas de forma direta, o diretor João Pedro Madureira, e a dupla Vinícius Meneguzzi e Taidje Gut, que também assinam a concepção, investem em possibilidades outras, oferecendo um campo semântico maior do que o esperado, engrandecendo o texto de Tarcísio Lara Puiati, vencedor do Concurso Nacional de Dramaturgia – Prêmio Carlos Carvalho em 2006. "Cara a tapa" oferece um jeito alternativo de olhar para um tema, para uma história, para recriar uma sensação. O resultado estético é, na mesma medida que simples, brilhante.

A história trata de um casal que, aparentemente, está apenas discutindo sua relação, mas que, aos poucos, se anuncia como suspeito de um homicídio. O discurso de Puiati é difícil e, por vezes, tedioso tamanha a rigidez de sua estrutura. Para contar sua história, o dramaturgo escolheu uma forma áspera: os diálogos estão dispostos numa falsa primeira pessoa que, na verdade, é uma terceira. O Marido, por exemplo, usa o “Eu” não para referir-se a si próprio, mas para narrar algo que um suposto “Eu” tenha feito. Em outras palavras, o jogo é de reconstituição: Marido e Mulher reconstituem os acontecimentos do dia do crime e, como cada um tem registros diferentes do que aconteceu, a conversa se torna, em vários momentos, bastante nebulosa, mesmo quando engraçada. Esse é, justamente, o momento de Madureira mostrar (mais uma vez) o seu (grande) valor como encenador porto-alegrense.

A situação da contagem acontece numa praia. Como nos diálogos não há nenhuma referência ao litoral, me pergunto se essa foi uma proposta do texto ou da encenação. Acredito na segunda opção e parto pra cima do que nomeei “poética da alternativa”. A situação dramaturgica ocorre numa cidade grande e isso sabemos porque o Marido trabalha alugando vagas de estacionamento para carros, profissão essa que não faz sentido numa cidade pequena. Além disso, o casal vai ao cinema ver musicais clássicos, outro sinal de que estamos numa metrópole. À guisa dessas indicações textuais, João Pedro Madureira, coloca todos em roupas de banho numa praia e, nós, espectadores, vemos as ondas projetadas em vídeo num telão ao fundo. Com isso, a concepção desloca o discurso, sem privar-se dele, oferencendo um campo alternativo para tratar o tema. Ao modificar a situação, a Vai!Cia de Teatro oferece oportunidades diversas para os sentidos serem produzidos, sem trair o texto, subverter a trama, negar o dramaturgo. Essa atitude encontra coerência em outras instâncias do espetáculo cênico, como, por exemplo, quando os policiais entram no palco tirando fotos como se fossem turistas, ou quando os personagens jogam com raquetes, ou ainda, numa das imagens mais potentes da peça, todos tomam um banho frio. João Pedro Madureira constrói um espetáculo de (belas) imagens em que o texto e a história continuam mantendo a importância original, o que faz dessa terceira produção do grupo mais uma excelente contribuição para a cidade.

Vinícius Meneguzzi e Patrícia Soso, já muitas vezes elogiados por seus outros trabalhos, interpretam o casal protagonista, oferecendo um excelente desempenho em "Cara a tapa". Ele interpreta um marido frágil e sedutor, enquanto ela uma dona de casa que adora musicais. Os movimentos são precisos, as entonações desenhadas em detalhes, as expressões econômicas. Laura Leão, Cassiano Ranzolin, Frederico Vasques e Sofia Ferreira, embora com personagens mais figurativos, com construções mais fluídas e menos formatadas pela situação dramática, acrescentam à produção os mesmos valores apontados aos dois protagonistas. De um modo geral, o elenco está bastante afinado e, de um jeito interessante, pode-se concluir que o hermetismo de Puiati encontra parceria no rebuscamento das formas como se dão as interpretações, o que é positivo.

Os demais materiais da encenação recebem usos cuidadosos e, por isso, potentes do ponto de vista da significação. Ao invés de banhar o palco com areia, a produção construiu pequenos quadrados que resolvem o problema criando uma metonímia bastante prática. Aparentemente corriqueiros, os figurinos servem aos personagens e elevam o padrão estético do espetáculo como um todo. A trilha sonora, em especial, a última música confirma a “poética da alternativa” nesses termos: em cena, um crime, o medo, a crise, o ápice. A trilha, e é preciso assistir ao espetáculo para sentir as devidas relações, propõe o mesmo, mas numa outra instância, num outro ritmo, numa sintonia paralela, porém igualmente forte.

Vivenciar uma experiência estética que te ofereça alguns minutos de entretenimento e, ao mesmo tempo, pontos de partida para uma reflexão, talvez, não organizada é um prazer possível em “Cara a tapa”. Produzido a partir do Prêmio Carlos Carvalho de Auxílio Montagem 2011, projeto da Coordenação Municipal de Artes Cênicas de Porto Alegre, o espetáculo merece vida longa e plateias cheias.



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Ficha Técnica:


Direção: João Pedro Madureira

Concepção: João Pedro Madureira, Vinícius Meneguzzi e Taidje Gut

Texto: Tarcísio Lara Puiati

Elenco: Cassiano Ranzolin, Frederico Vasques, Laura Leão, Patrícia Soso, Sofia Ferreira e Vinícius Meneguzzi

Cenário: Leonardo Fanzelau

Iluminação: Carlos Azevedo

Operação de Luz: Casemiro Azevedo

Criação de Figurinos: Carmela Moraes

Execução de Figurinos: Atelier Margo Valim

Pesquisa de Trilha Sonora: João Pedro Madureira

Sonoplastia: Marcos Chaves

Vídeos: Luciana Mazeto e Vinícius Lopes

Contra-regra: Marcos Chaves

Coordenação de Produção: Laura Leão

Produção Executiva: Patrícia Machado

Cabelos: Elison Couto

Maquiagem: Taidje Gut

Assessoria de Imprensa: Bebê Baumgarten

Arte-gráfica: Dídi Jucá

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