29 de jul. de 2011

Reator – Ato de Walney Costa


Foto: divulgação

O crime no teatro

Com os pés bem firmes nos anos de 1970, “Reator – Ato de Walney Costa” cheira aos espetáculos de teatro livre bem característicos do período pós 1968. Numa reação à semiologia clássica, cujas garras descobriam o teatro, categorizavam os signos teatrais, deleitavam-se com o texto e com o formalismo, a vanguarda cênica valorizava o movimento, o gesto disforme, o informalismo, a liberdade. Em 1981, tendo sido indicado ao Troféu Açorianos de Melhor Ator por sua atuação em “O maravilhoso mundo do circo” (direção de Euclides Dutra de Moraes, o Kydo, com Elison Couto no elenco entre outros, espetáculo vencedor do Prêmio Qorpo Santo de Dramaturgia), Walney Costa, natural de Triunfo, saiu de Porto Alegre e foi construir a sua carreira na região sudoeste do país. Lá, seu nome esteve envolvido, entre várias, em produções bastante conhecidas no cinema, na televisão e no teatro, como “Hamlet” e “Mistérios Gozozos” (de Zé Celso Martinez Corrêa), “Nossa Vida Não Vale um Chevrolet” e “ Ovelhas que Voam se Perdem no Céu” (de Mário Bortolotto). Dono de uma voz forte e uma dicção perfeita, o ator é bem vindo de volta aos palcos porto-alegrenses. No entanto, sem alguém que assine a direção e a dramaturgia diferente do ator que a interpreta, “Reator – Um ato de Walney Costa” se perde em equívocos, que fazem dos 75 minutos de sua ocupação no tempo e no espaço, uma eternidade, do mesmo jeito que os cinco reais cobrados pelo ingresso uma verdadeira fortuna. Tempo, espaço e dinheiro são valores relativos. História, nem sempre.

Pouco pode realmente ser considerado teatro na produção que acolhe o público na escadaria de acesso à plateia já com uma câmera ligada cujas imagens são transmitidas num telão ao fundo. Costa inicia, após uma saudação informal, uma série de poemas e poesias ditos de forma quase ininterrupta. Walney se apresenta como "Walney", um personagem, uma figura fluída a que poderíamos chamar de teatral, não sendo (ou sendo, considerando a possibilidade da performance como recurso estético cênico) confundido com o ator. Além dele, Lico Silveira, no violão, e Dodô Peixoto, na percussão, estão no palco. No próscênio, de costas para o público, de frente para o ator, está Eugênio Moreira que, como Silveira e Peixoto, usa um figurino branco (um vestido feito de TNT branco, uma opção estética bastante negativa). A vestimenta de Walney em relação ao figurino daqueles que o acompanham em cena aponta para a existência de uma certa teatralidade. Num determinado ponto, ao terminar de ler um texto num livro, Silveira e Peixoto deixam cair seus livros no palco de madeira. O som único expressa uma combinação anterior, isto é, a proposta de algo interpretar algo diante de alguém,que é o que chamamos de teatro. Por fim, há uma cena, a melhor em todo o tempo da encenação, em que uma arma produz um banho de sangue, cujo efeito não descreverei, deixando para quem assistir perceber com mais detalhes. O importante é descrever que, nesses momentos, o teatro, é realmente cúmplice de “Reator”, produção que, em todos os outros momentos, não é mais que um sarau literário em que apenas uma só pessoa tem o prazer de dizer poesia e os outros o encargo (por vezes até prazeroso) de meramente ouvi-las. Salvam-se ainda a trilha sonora ao executada ao vivo e a iluminação, recursos estéticos bem aproveitados pela produção.

O texto dito pelo ator, pauperrimamente produzido, é uma sucessão de aliterações (repetição de sons consonantais), assonâncias (repetição de sons vocálicos) e paronomásias (aproximação de palavras sonoramente parecidas, mas significados distintos). Frases como “como um cachorro, eu corro no morro e mato, de fato, o ato de maltrato” (criação minha) são interessantes nos primeiros instantes e úteis numa aula de estilística textual, mas cansativas quando ultrapassam meia hora. Acrescenta-se a isso, a exposição de teses artístico-sociais abandonadas há trinta anos como o teatro ser o espelho do homem, o artista precisar de liberdade, é preciso incendiar as barreiras e promover uma vida sem prisões. Os equívocos continuam quando a dramaturgia veste-se de uma carregada bandeira ideológica e proclama a máxima já mil vezes derrubada: “quanto mais a ciência avança, mais a miséria cresce”.

Talvez o momento mais inoportuno da dramaturgia, infelizmente ocupando boa parte do espetáculo, seja a narração da morte de Abraham Lincoln, presidente dos Estados Unidos no período de 1862-1865. Em sua apresentação, Walney apresenta a família Both, cujo pai e filhos foram e são conhecidos como iniciadores das produções shakespearianas em solo americano, moradores de Maryland, um dos estados do sul que se revoltou contra o norte quando Lincoln ganhou a presidência. Em abril de 1865, o jovem ator John Wilkes Both assassinou o presidente americano enquanto esse assistia a uma comédia no Teatro Ford. Embora descrita de forma excepcional no romance de Margaret Michell e em technicolor pelo filme homônimo dirigido, entre muitos outros, por Victor Fleming, ...E o vento levou, todos sabemos que a derrota da Guerra da Secessão, movimento levantado por sete estados conservadores, incluindo Maryland, contra Lincoln, foi fundamental para o estabelecimento da democracia mundial, o fim do feudalismo moderno das grandes propriedades de terra e da escravidão e, sobretudo, o estabelecimento do liberalismo econômico que, décadas depois fez mal ao mundo todo, mas que, naquela ocasião, era essencial. A sugestão de assassinar o presidente Barack Obama, ainda na linha dos equívocos, é outra das facetas de “Reator” que parece desconsiderar o fato de que o atual presidente americano foi o que mais aumentou a dívida do próprio país na mesma medida em que o que mais investiu em políticas sociais e o que menos investiu na indústria da guerra. Por fim, comparar a política americana com a política brasileira é um tema por demais desgastante para um sarau poético por vários motivos, mas sobretudo pelo fato de que nossa política não se organiza como a dos americanos: aqui ganha quem tiver maior número de votos da população, lá quem tiver obtido maior número de votos dos delegados que constituem o colégio eleitoral.

“Reator – Ato de Walney Costa”, a peça, propõe se organizar teoricamente em cima da tese: “Um crime representado no teatro pode ser mais cruel que na vida real”. Esteticamente, fica ao espectador o convite a concordar. E esquecer.

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Ficha técnica:
Direção, texto e atuação: Walney Costa
Assistente de direção: José Henrique Ligabue
Direção músical: Lico Silveira
Diretor de vídeo: Saturnino Rocha
Câmera: Eugênio Moreira
Criação e operação de luz: José Henrique Ligabue
Figurinos: Valderes Calgaro
Músicos: Lico Silveira (violão) e Dodô Peixoto (Percussão)
Personal texto: Mariana Consoni e Laís Brum
Produção: Iuri Wander
Design Grafico: Ana Sartori

24 de jul. de 2011

Cara a tapa

Foto: Luciane Pires Ferreira

Poética da Alternativa

O espectador de “Cara a tapa”, o novo espetáculo da Vai! Cia. de Teatro, grupo responsável pelas produções "Agora Eu Era" e "Parasitas", não pode se privar de descobrir a "poética da alternativa", talvez, uma das sugestões mais interessantes dessa montagem. Sem deixar de aproveitar as situações descritas de forma direta, o diretor João Pedro Madureira, e a dupla Vinícius Meneguzzi e Taidje Gut, que também assinam a concepção, investem em possibilidades outras, oferecendo um campo semântico maior do que o esperado, engrandecendo o texto de Tarcísio Lara Puiati, vencedor do Concurso Nacional de Dramaturgia – Prêmio Carlos Carvalho em 2006. "Cara a tapa" oferece um jeito alternativo de olhar para um tema, para uma história, para recriar uma sensação. O resultado estético é, na mesma medida que simples, brilhante.

A história trata de um casal que, aparentemente, está apenas discutindo sua relação, mas que, aos poucos, se anuncia como suspeito de um homicídio. O discurso de Puiati é difícil e, por vezes, tedioso tamanha a rigidez de sua estrutura. Para contar sua história, o dramaturgo escolheu uma forma áspera: os diálogos estão dispostos numa falsa primeira pessoa que, na verdade, é uma terceira. O Marido, por exemplo, usa o “Eu” não para referir-se a si próprio, mas para narrar algo que um suposto “Eu” tenha feito. Em outras palavras, o jogo é de reconstituição: Marido e Mulher reconstituem os acontecimentos do dia do crime e, como cada um tem registros diferentes do que aconteceu, a conversa se torna, em vários momentos, bastante nebulosa, mesmo quando engraçada. Esse é, justamente, o momento de Madureira mostrar (mais uma vez) o seu (grande) valor como encenador porto-alegrense.

A situação da contagem acontece numa praia. Como nos diálogos não há nenhuma referência ao litoral, me pergunto se essa foi uma proposta do texto ou da encenação. Acredito na segunda opção e parto pra cima do que nomeei “poética da alternativa”. A situação dramaturgica ocorre numa cidade grande e isso sabemos porque o Marido trabalha alugando vagas de estacionamento para carros, profissão essa que não faz sentido numa cidade pequena. Além disso, o casal vai ao cinema ver musicais clássicos, outro sinal de que estamos numa metrópole. À guisa dessas indicações textuais, João Pedro Madureira, coloca todos em roupas de banho numa praia e, nós, espectadores, vemos as ondas projetadas em vídeo num telão ao fundo. Com isso, a concepção desloca o discurso, sem privar-se dele, oferencendo um campo alternativo para tratar o tema. Ao modificar a situação, a Vai!Cia de Teatro oferece oportunidades diversas para os sentidos serem produzidos, sem trair o texto, subverter a trama, negar o dramaturgo. Essa atitude encontra coerência em outras instâncias do espetáculo cênico, como, por exemplo, quando os policiais entram no palco tirando fotos como se fossem turistas, ou quando os personagens jogam com raquetes, ou ainda, numa das imagens mais potentes da peça, todos tomam um banho frio. João Pedro Madureira constrói um espetáculo de (belas) imagens em que o texto e a história continuam mantendo a importância original, o que faz dessa terceira produção do grupo mais uma excelente contribuição para a cidade.

Vinícius Meneguzzi e Patrícia Soso, já muitas vezes elogiados por seus outros trabalhos, interpretam o casal protagonista, oferecendo um excelente desempenho em "Cara a tapa". Ele interpreta um marido frágil e sedutor, enquanto ela uma dona de casa que adora musicais. Os movimentos são precisos, as entonações desenhadas em detalhes, as expressões econômicas. Laura Leão, Cassiano Ranzolin, Frederico Vasques e Sofia Ferreira, embora com personagens mais figurativos, com construções mais fluídas e menos formatadas pela situação dramática, acrescentam à produção os mesmos valores apontados aos dois protagonistas. De um modo geral, o elenco está bastante afinado e, de um jeito interessante, pode-se concluir que o hermetismo de Puiati encontra parceria no rebuscamento das formas como se dão as interpretações, o que é positivo.

Os demais materiais da encenação recebem usos cuidadosos e, por isso, potentes do ponto de vista da significação. Ao invés de banhar o palco com areia, a produção construiu pequenos quadrados que resolvem o problema criando uma metonímia bastante prática. Aparentemente corriqueiros, os figurinos servem aos personagens e elevam o padrão estético do espetáculo como um todo. A trilha sonora, em especial, a última música confirma a “poética da alternativa” nesses termos: em cena, um crime, o medo, a crise, o ápice. A trilha, e é preciso assistir ao espetáculo para sentir as devidas relações, propõe o mesmo, mas numa outra instância, num outro ritmo, numa sintonia paralela, porém igualmente forte.

Vivenciar uma experiência estética que te ofereça alguns minutos de entretenimento e, ao mesmo tempo, pontos de partida para uma reflexão, talvez, não organizada é um prazer possível em “Cara a tapa”. Produzido a partir do Prêmio Carlos Carvalho de Auxílio Montagem 2011, projeto da Coordenação Municipal de Artes Cênicas de Porto Alegre, o espetáculo merece vida longa e plateias cheias.



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Ficha Técnica:


Direção: João Pedro Madureira

Concepção: João Pedro Madureira, Vinícius Meneguzzi e Taidje Gut

Texto: Tarcísio Lara Puiati

Elenco: Cassiano Ranzolin, Frederico Vasques, Laura Leão, Patrícia Soso, Sofia Ferreira e Vinícius Meneguzzi

Cenário: Leonardo Fanzelau

Iluminação: Carlos Azevedo

Operação de Luz: Casemiro Azevedo

Criação de Figurinos: Carmela Moraes

Execução de Figurinos: Atelier Margo Valim

Pesquisa de Trilha Sonora: João Pedro Madureira

Sonoplastia: Marcos Chaves

Vídeos: Luciana Mazeto e Vinícius Lopes

Contra-regra: Marcos Chaves

Coordenação de Produção: Laura Leão

Produção Executiva: Patrícia Machado

Cabelos: Elison Couto

Maquiagem: Taidje Gut

Assessoria de Imprensa: Bebê Baumgarten

Arte-gráfica: Dídi Jucá

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