Milkshakespeare
Foto: Vilmar Carvalho
Dois retornos, poucas chegadas
O espetáculo vencedor do Prêmio Funarte de Dramaturgia 2003 traz de volta aos palcos gaúchos Júlio Zanotta Vieira, um nome que as gerações pós ‘80 pouco conhecem. O escritor, que assinou importantes montagens no fim dos anos setenta e teve que, inclusive, sair do país em função da Censura Federal, é bem-vindo de volta à casa teatral porto-alegrense. “Milkshakespeare” tem uma estrutura dramática contemporânea que vale uma análise bem mais profunda do que se tentará propor aqui.
Tentando encontrar Zanotta na montagem da Cia. Face & Carretos, sobre a qual trataremos mais adiante, é possível observar que há dois atos, sendo o primeiro um degrau para o segundo e não a antecedência deste como tradicionalmente acontece. Desde a abertura, o texto apresenta a sua estrutura pautada na oposição entre dois elementos. Vemos James e, depois, Sir. William Stanley. Enquanto o segundo tem uma fala empolada, um discurso carregado de orações subordinadas e palavras difíceis, o segundo carrega a entonação de informações, produzindo frases curtas. A fúria do segundo contrasta com a despreocupação do primeiro. Sir. William protagoniza. James coadjuva. Um tem um objetivo que sustenta toda a história. O outro se realiza no estar. As ordens de um são as sugestões de outro. Essa oposição se repete no tom semântico dos diálogos. O dramaturgo propõe anedotas e a piada é um gênero textual que se apóia sobre a oposição. O discurso se estabelece sobre uma isotopia, sobre um referencial. De repente, outro referencial aparece quebrando o primeiro. Temos a célebre peripécia aristotélica. Por exemplo, tudo está preparado para o aparecimento de bruxas. Elas aparecem, mas não como esperávamos: são duas jovens, em roupas curtas com um liquidificador ligado. Outro exemplo: num túmulo, James lê William. Esperamos que seja Shakespeare a pessoa enterrada. Não é. É outro William. E, assim, durante toda o desenrolar dramático, as situações cômicas se organizam pelo fundamentar de uma realidade e o apresentar de uma outra alternativa. No entanto, são poucas as vezes em que ela, a comédia, de fato, torna-se plena.
Com relação ao texto, o não estabelecimento real da comédia se fundamenta no peso que Stanley tem na narrativa em relação a James. Se o protagonista e o seu escudeiro são equivalentes opostos, todos os demais personagens do primeiro ato fazem pesar a figura do primeiro. Ninguém mais fala como James. Nenhum outro personagem é leve, jovial, pueril. A trama se desequilibra e cai. As bruxas, embora comportando-se de forma cômica, falam em tom rebuscado. Os palavrões na boca de Ofélia soam mal porque a personagem referencia em excesso a construção clássica. Lady Macbeth e Thelonius são fardos que James não consegue carregar, por mais que tente. A leveza proposta inicialmente, e que faz o espectador pensar em Monty Python, se perde em frases tão longas e em texto tão depurado.
No final do primeiro ato, Thelonious apresenta para Willian Stanley um milkshake, um hambúrguer e umas batatas-fritas macabras. O lorde, não tendo conseguido encontrar o rival William Shakespeare, que, na narrativa, fez sucesso às custas de suas histórias, compra uma franquia para vender os produtos recém descobertos. O encontro entre Stanley e Shakespeare fica, assim, adiado. Na segunda parte, quatrocentos anos depois, estamos numa loja desses produtos franqueados: a famosa McDuncan’s, numa alusão clara à rede McDonald’s.
No segundo ato, a força de Stanley se realiza na estética de terror proposta pelo texto. Por terror, temos uma lógica narrativa que se fundamenta não na relação de causa e conseqüência, mas no desejo ulterior de sangue, destruição e morte. O herói de uma história de terror não tem motivos para matar, mas se justifica na matança. Daí a distância entre esse gênero e as histórias de horror. Macbeth, um dos funcionários da loja, fica sabendo que o grande William Stanley, fundador da rede em que trabalha, voltou da morte. A notícia chegou através de uma estátua de Shakespeare que assombra o funcionário e seu colega, o jovem Hamlet, que descasca batatas. Macbeth sente o ódio em suas veias e planeja matar o patrão. Hamlet sente o mesmo e realiza o ato em outra pessoa. As duas funcionárias da limpeza, Lady Macbeth e Ofélia, estão perdidas na narrativa. Antes do fim, um falso terceiro ato aparece: Thelonius surge do século XVI acompanhado de um investigador robotizado, o Sargento Kelly Boy. Esses dois últimos personagens vivem em paralelo a Hamlet e a Macbeth, esses ainda inconsistentes embora estruturados, e se perdem numa história que não é sua. A estrutura do terror, apresentada como possível, se realiza parcamente, tornando a proposta, numa avaliação global, pouco ou quase nada aproveitada. E a situação só fica ainda mais carregada com o continuar, nesse segundo e terceiro ato, do discurso pesado e difícil que já havia cansado os leitores do primeiro.
Camilo de Lélis, diretor que, se não suficientemente renomado pela grandeza do seu currículo, é um dos profissionais mais importantes do estado por ter produzido, sem dúvida, os dois maiores musicais da história teatral gaúcha (“Jacobina, uma balada para o Cristo Mulher” e “Os crimes da Rua do Arvoredo”) torna, com esse projeto, a literatura de Zanotta teatro, uma outra arte, com outros signos, outros significantes, outras estruturas discursivas, outras possibilidades de manifestação.
O espetáculo teatral que ganhou o Prêmio de Incentivo à Pesquisa Teatral no Teatro de Arena 2010 se apresenta como influenciado pela atmosfera do diretor cinematográfico Tim Burton. A influência, no entanto, não opera por nenhum signo teatral e pára em tudo aquilo que é plástico. Os figurinos, o cenário (as paredes do Teatro de Arena foram repintadas) e a maquiagem conversam com Tim Burton em suas últimas produções para o cinema e agregam valor ao texto de Zanotta. No mais, faltou teatro à produção cênica estreante nesse inverno gaúcho. Em cena, Renata de Lélis, Juliana Kussler e Felipe de Paula envolvem na encenação grande talento e profissionalismo. Mas é graças a Eduardo Mendonça que os momentos medianos do espetáculo teatral aparecem. Percebemos cores no texto dito, agilidade nos movimentos, precisão nas marcas, presença cênica e tudo aquilo que é bom de encontrar em atores profissionais. A técnica, no entanto, não é suficiente para contar uma história que, se se realiza bem na literatura, precisa de grandes cortes para se tornar teatro.
O texto dito em cena é pesado e cansativo. O objetivo do herói (encontrar William Shakespeare e dele se vingar) se perde. As situações propostas não se resolvem. As boas opções estéticas pouco se relacionam e quase poluem. O tempo cênico é desperdiçado. A história aparece com vários e pouco claros finais. Se a oposição é uma marca de Zanotta outrora aqui levantada como não regularmente plenificada, não é dado ao espectador sentir qual é a marca de Camilo de Lélis, parecendo o diretor, infelizmente, tão servil ao texto dramático.
Resta, no entanto, felicitar o diretor que reabre os trabalhos de seu grupo e mostra à capital ter excelentes atores para novos projetos e usos aplaudíveis de possibilidades estéticas. Evoé.
*
Ficha Técnica:
Texto: Júlio Zanotta Vieira
Direção: Camilo de Lélis
Elenco: Eduardo Mendonça, Felipe de Paula, Juliana Kussler e Renata de Lélis
Coordenação da Pesquisa e Preparação de Atores: Renata de Lélis
Figurinos: Juliana Kussler e Renata de Lélis
Maquiagem: Renata de Lélis
Trilha Sonora: Bebeto Alves
Design de Luz: Maurício Moura
Ambientação: Marco Fronckowiak
Adereços: Guilherme Luchsinger
Grafite: Jackson Brum e Marllon Sheep
Projeto Gráfico: Eduardo Estima
Fotos: Vilmar Carvalho
Produção: E2 Entretenimento e Felipe de Paula
Realização: Cia Teatral Face e Carretos
Dois retornos, poucas chegadas
O espetáculo vencedor do Prêmio Funarte de Dramaturgia 2003 traz de volta aos palcos gaúchos Júlio Zanotta Vieira, um nome que as gerações pós ‘80 pouco conhecem. O escritor, que assinou importantes montagens no fim dos anos setenta e teve que, inclusive, sair do país em função da Censura Federal, é bem-vindo de volta à casa teatral porto-alegrense. “Milkshakespeare” tem uma estrutura dramática contemporânea que vale uma análise bem mais profunda do que se tentará propor aqui.
Tentando encontrar Zanotta na montagem da Cia. Face & Carretos, sobre a qual trataremos mais adiante, é possível observar que há dois atos, sendo o primeiro um degrau para o segundo e não a antecedência deste como tradicionalmente acontece. Desde a abertura, o texto apresenta a sua estrutura pautada na oposição entre dois elementos. Vemos James e, depois, Sir. William Stanley. Enquanto o segundo tem uma fala empolada, um discurso carregado de orações subordinadas e palavras difíceis, o segundo carrega a entonação de informações, produzindo frases curtas. A fúria do segundo contrasta com a despreocupação do primeiro. Sir. William protagoniza. James coadjuva. Um tem um objetivo que sustenta toda a história. O outro se realiza no estar. As ordens de um são as sugestões de outro. Essa oposição se repete no tom semântico dos diálogos. O dramaturgo propõe anedotas e a piada é um gênero textual que se apóia sobre a oposição. O discurso se estabelece sobre uma isotopia, sobre um referencial. De repente, outro referencial aparece quebrando o primeiro. Temos a célebre peripécia aristotélica. Por exemplo, tudo está preparado para o aparecimento de bruxas. Elas aparecem, mas não como esperávamos: são duas jovens, em roupas curtas com um liquidificador ligado. Outro exemplo: num túmulo, James lê William. Esperamos que seja Shakespeare a pessoa enterrada. Não é. É outro William. E, assim, durante toda o desenrolar dramático, as situações cômicas se organizam pelo fundamentar de uma realidade e o apresentar de uma outra alternativa. No entanto, são poucas as vezes em que ela, a comédia, de fato, torna-se plena.
Com relação ao texto, o não estabelecimento real da comédia se fundamenta no peso que Stanley tem na narrativa em relação a James. Se o protagonista e o seu escudeiro são equivalentes opostos, todos os demais personagens do primeiro ato fazem pesar a figura do primeiro. Ninguém mais fala como James. Nenhum outro personagem é leve, jovial, pueril. A trama se desequilibra e cai. As bruxas, embora comportando-se de forma cômica, falam em tom rebuscado. Os palavrões na boca de Ofélia soam mal porque a personagem referencia em excesso a construção clássica. Lady Macbeth e Thelonius são fardos que James não consegue carregar, por mais que tente. A leveza proposta inicialmente, e que faz o espectador pensar em Monty Python, se perde em frases tão longas e em texto tão depurado.
No final do primeiro ato, Thelonious apresenta para Willian Stanley um milkshake, um hambúrguer e umas batatas-fritas macabras. O lorde, não tendo conseguido encontrar o rival William Shakespeare, que, na narrativa, fez sucesso às custas de suas histórias, compra uma franquia para vender os produtos recém descobertos. O encontro entre Stanley e Shakespeare fica, assim, adiado. Na segunda parte, quatrocentos anos depois, estamos numa loja desses produtos franqueados: a famosa McDuncan’s, numa alusão clara à rede McDonald’s.
No segundo ato, a força de Stanley se realiza na estética de terror proposta pelo texto. Por terror, temos uma lógica narrativa que se fundamenta não na relação de causa e conseqüência, mas no desejo ulterior de sangue, destruição e morte. O herói de uma história de terror não tem motivos para matar, mas se justifica na matança. Daí a distância entre esse gênero e as histórias de horror. Macbeth, um dos funcionários da loja, fica sabendo que o grande William Stanley, fundador da rede em que trabalha, voltou da morte. A notícia chegou através de uma estátua de Shakespeare que assombra o funcionário e seu colega, o jovem Hamlet, que descasca batatas. Macbeth sente o ódio em suas veias e planeja matar o patrão. Hamlet sente o mesmo e realiza o ato em outra pessoa. As duas funcionárias da limpeza, Lady Macbeth e Ofélia, estão perdidas na narrativa. Antes do fim, um falso terceiro ato aparece: Thelonius surge do século XVI acompanhado de um investigador robotizado, o Sargento Kelly Boy. Esses dois últimos personagens vivem em paralelo a Hamlet e a Macbeth, esses ainda inconsistentes embora estruturados, e se perdem numa história que não é sua. A estrutura do terror, apresentada como possível, se realiza parcamente, tornando a proposta, numa avaliação global, pouco ou quase nada aproveitada. E a situação só fica ainda mais carregada com o continuar, nesse segundo e terceiro ato, do discurso pesado e difícil que já havia cansado os leitores do primeiro.
Camilo de Lélis, diretor que, se não suficientemente renomado pela grandeza do seu currículo, é um dos profissionais mais importantes do estado por ter produzido, sem dúvida, os dois maiores musicais da história teatral gaúcha (“Jacobina, uma balada para o Cristo Mulher” e “Os crimes da Rua do Arvoredo”) torna, com esse projeto, a literatura de Zanotta teatro, uma outra arte, com outros signos, outros significantes, outras estruturas discursivas, outras possibilidades de manifestação.
O espetáculo teatral que ganhou o Prêmio de Incentivo à Pesquisa Teatral no Teatro de Arena 2010 se apresenta como influenciado pela atmosfera do diretor cinematográfico Tim Burton. A influência, no entanto, não opera por nenhum signo teatral e pára em tudo aquilo que é plástico. Os figurinos, o cenário (as paredes do Teatro de Arena foram repintadas) e a maquiagem conversam com Tim Burton em suas últimas produções para o cinema e agregam valor ao texto de Zanotta. No mais, faltou teatro à produção cênica estreante nesse inverno gaúcho. Em cena, Renata de Lélis, Juliana Kussler e Felipe de Paula envolvem na encenação grande talento e profissionalismo. Mas é graças a Eduardo Mendonça que os momentos medianos do espetáculo teatral aparecem. Percebemos cores no texto dito, agilidade nos movimentos, precisão nas marcas, presença cênica e tudo aquilo que é bom de encontrar em atores profissionais. A técnica, no entanto, não é suficiente para contar uma história que, se se realiza bem na literatura, precisa de grandes cortes para se tornar teatro.
O texto dito em cena é pesado e cansativo. O objetivo do herói (encontrar William Shakespeare e dele se vingar) se perde. As situações propostas não se resolvem. As boas opções estéticas pouco se relacionam e quase poluem. O tempo cênico é desperdiçado. A história aparece com vários e pouco claros finais. Se a oposição é uma marca de Zanotta outrora aqui levantada como não regularmente plenificada, não é dado ao espectador sentir qual é a marca de Camilo de Lélis, parecendo o diretor, infelizmente, tão servil ao texto dramático.
Resta, no entanto, felicitar o diretor que reabre os trabalhos de seu grupo e mostra à capital ter excelentes atores para novos projetos e usos aplaudíveis de possibilidades estéticas. Evoé.
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Ficha Técnica:
Texto: Júlio Zanotta Vieira
Direção: Camilo de Lélis
Elenco: Eduardo Mendonça, Felipe de Paula, Juliana Kussler e Renata de Lélis
Coordenação da Pesquisa e Preparação de Atores: Renata de Lélis
Figurinos: Juliana Kussler e Renata de Lélis
Maquiagem: Renata de Lélis
Trilha Sonora: Bebeto Alves
Design de Luz: Maurício Moura
Ambientação: Marco Fronckowiak
Adereços: Guilherme Luchsinger
Grafite: Jackson Brum e Marllon Sheep
Projeto Gráfico: Eduardo Estima
Fotos: Vilmar Carvalho
Produção: E2 Entretenimento e Felipe de Paula
Realização: Cia Teatral Face e Carretos