23 de dez. de 2010

O mapa_predio 255

Foto: divulgação


A trilha até a montanha e o gesso

O Mapa_prédio 255 lembra, do ponto de vista do seu formato, Love Hurts – todo amor que houver nessa vida, espetáculo dirigido por Zé Adão Barbosa em 1996. Nesse o público caminhava pelo Clube de Cultura sendo acompanhado por um guia que recitava Fragmentos de um discurso amoroso, de Roland Barthes, parando em determinados lugares para assistir a cenas clássicas de amor da história do teatro e da literatura. Na produção de formatura de Francine Kliemann, o público anda pelos dois prédios do Departamento de Arte Dramática da UFRGS e, em cada lugar, há uma cena a mais na contagem de uma história baseada em O céu que nos protege (The sheltering sky), lançado em 1949, o livro de estreia do escritor americano Paul Bowles (1910-1999). Diones Camargo assina a dramaturgia ao lado de Tatiana Vinhais, que também assina sozinha a direção.

Inicialmente, o público, ao obter o ingresso, ganha um passaporte indicando o caminho a seguir. Há dois caminhos possíveis de começo. Na metade da contagem, alguns passaportes permitem que o portador troque de caminho. Outros não. Assim, o resultado é que há quatro contagens previstas para essa história, todas elas determinadas no ingresso ao Prédio número 255 da Rua General Vitorino, Centro de Porto Alegre. Guias auxiliam os grupos que também ganham mapas. Poucos são os ambientes em que é possível sentar. O espetáculo ocupa desde estúdios de ensaio até camarins, corredores, porão, armário, banheiros e área externa. Nisso, nessa concepção da direção, está o maior, mas não o único, valor dessa produção.

Kit e Port Moresby são um casal americano em viagem para a África sem data prevista para o retorno. As dificuldades de relacionamento entre os dois, ao invés de desaparecerem, têm suas cores aumentadas na imensidão das paisagens tropicais. Ao partir, seus interesses são justamente abandonar o mundo moderno e descobrir a simplicidade da vida. A vida, no entanto, se torna bastante complicada a medida que, desprotegidos de si mesmos, têm apenas o céu por eles.

A história começa quando Port conta um sonho que teve. Além de Kit, Turner, um amigo do casal, os acompanha e ouve a imagem que Moresby teve enquanto dormia. Um trem parte em direção a uma montanha. Os dentes de Port, que são de gesso, doem. O trem se choca. A força da imagem dessa máquina partindo em direção ao seu fim acompanhará toda a trajetória do trio e de outros personagens que aparecerão.

No caminho traçado pelo meu passaporte, Kit é protagonista. Somos testemunhas de seu envolvimento furtivo com Turner. Desconfiado da traição da esposa, Port se embrenha cada vez mais nesse mundo novo que todos descobrem ser cada vez mais diferente do seu, os Estados Unidos do pós-guerra. Nós, espectadores, sala após sala, ambiente após ambiente, somos contemplados com imagens, com instalações que se opõem ao corriqueiro: sons amelódicos, esculturas cujas formas não são de fácil identificação, destruição. Port contrai uma doença faltal. Turner desaparece. Uma outra personagem e seu filho também somem. Kit está sozinha nesse mundo completamente diferente do seu. E que se mostra bastante diferente do nosso também.

O espectador desvenda o DAD. E se descobre livre para sentar, para movimentar-se, para olhar o que deseja ou pode, diferente de um espetáculo de assistência tradicional em que se chega, se senta, se assiste e só se levanta na hora de ir embora. Ao mesmo tempo, essa liberdade não é plena. Há paredes nesse prédio público da Universidade. Algumas cenas só acontecem em ambientes em que poucas pessoas têm total acesso, de forma que apenas o som dos diálogos chegam para alguns. Há lugares insalubres, abafados, sujos, enquanto outros são arejados e confortáveis. O espectador, além disso, deve seguir o caminho traçado no seu passaporte. Essa é uma metáfora riquíssima para o universo de Bowles. O deserto é amplo, mas a liberdade dele não é plena afinal. O casal não consegue voltar para casa: documentos somem, transportes são perdidos, o dinheiro acaba, a doença e a morte aparecem. O trem se choca com força e se espedaça nessa montanha como previra o sonho de Port. Sozinha, Kit terá que juntar os cacos de gesso de sua vida.

Não li o livro, nem vi o filme dirigido por Bernardo Bertolucci (1990). Mas sei que o final da história é o encontro de Kit consigo mesma numa sociedade bastante diferente da sua, com outros valores, outros sistemas, outras crenças. Diones Camargo encerra o seu jeito de ver a história antes disso.

Já facilmente de ser identificado nos seus outro trabalhos, o estilo de Diones Camargo é mais uma vez ratificado: amplo uso de imagens, sobreposição delas, referências pop e poucas conexões. O leitor de Camargo precisa se movimentar no texto para conferir-lhe sozinho significado se quiser tê-lo. Sua temática também se repete e me faz lembrar um trecho de A trégua, de Mário Benedetti, que cito a seguir:

“O que está pior, então (hoje em relação ao passado)? Depois de muito espremer meu cérebro, cheguei à convicção de que o que está pior é a resignação. Os rebeldes passaram a ser semi-rebeldes, os semi-rebeldes, a resignados. [...] Mas a resignação não é toda a verdade. No princípio, foi a resignação; depois, o abandono de escrúpulo; mais tarde, a conivência.” (Rio de Janeiro: Objetiva, 2007. p. 58-59)

Nesse, como também nos outros textos assinados por Camargo, em questão, está o horror diante da conivência, a tentativa fracassada, ou inusitadamente feliz, da resignação. O Mapa_predio 255 é um dos momentos desse dramaturgo em que o final feliz aparece de forma apoteótica e, por isso, estranha a quem lhe está acostumado. A cena final, em que os personagens dançam sob a luz da lua, é um alívio para quem estava preso (e protegido?) sob o sol, ou para quem estava preso (e protegido?)  no prédio antigo que tem frente para a Av. Senador Salgado Filho. Um descanso merecido, embora com uma boa dose de alienação e, inevitavelmente, de resignação não bem-vinda. Assim como as cenas sem diálogos e os momentos de caminhadas que entremeiam a história são um momento de pausa para o espectador, a cena final é, quem sabe, uma pausa para Kit que continuará sua trajetória até voltar para casa.

Os personagens não são ricos e há pouco espaço para eles na encenação. Para Kit, que tem privilégios na história que eu vi, sua expressão consiste em brigar com Port, alegrar-se com Turner, chorar no final. A Turner e Port, cabem-lhes menos. Aos demais, menos ainda. Francine Kliemann e Manoela Wunderlich, as duas Kit, estão excelentes em seus papéis, ainda que, como disse, pouco havia para se fazer. O máximo, penso eu, no entanto, foi feito. O mesmo se pode dizer de Fabrizio Gorziza na interpretação de Port. Nessa produção, o destaque está mesmo para a ocupação do espaço cênico. Nesse sentido, a direção de arte (figurinos, maquiagem dos atores e dos ambientes, iluminação) está de parabéns pelos resultados obtidos. A opressão, o sufocamento, as nuances de ritmo que fazem com quem se descanse e se canse, se veja e se reflita, estão todas contempladas nos aspectos visuais: desde os passaportes e os mapas, passando pela postura dos guias, até a forma segura e detalhada com que cada pedaço de lugar fora utilizado.

Sai-se do espetáculo, convivendo um pouco mais consigo mesmo, resignado talvez, mas feliz com a companhia. A metodologia da assistência, a forma de nos fazer trilhar um caminho, mesmo que esse caminho possa terminar contra uma montanha, tem relação direta com a história. Forma e conteúdo aqui se casam perfeitamente e o teatro, excelentemente usado, mostra que ganha não apenas Kliemann, que obtem, nesse verão, seu título de graduação, mas todo um grupo de pessoas que merecem os agradecimentos pela ótima produção que disponibilizaram à cidade nesse momento de finalização do, sem dúvida, mais rico ano das artes cênicas gaúchas.

*

Ficha técnica:

Direção: Tatiana Vinhais
Dramaturgia: Diones Camargo e Tatiana Vinhais
Orientação Acadêmica: Silvia Balestreri Nunes

Elenco:
Alexandre Borin Antunes
Diego Acauan
Fabrizio Gorziza
Francine Kliemann
Frederico Vasques
Keka Bittencourt
Manoela Wunderlich
Pablo Damian

Participação Especial:
Elielto Rocha
Isabel Ramil

Guias: Elielto Rocha, Diones Camargo, Tatiana Vinhais, Isabel Ramil, Vivis Schames e Letícia Pinheiro.
Produção: Francine Kliemann e Pablo Damian
Trilha sonora: O grupo.
Arte gráfica: Isabel Ramil e Juliano Ventura
Cenografia, Ambientação e Iluminação: O grupo
Vídeos: Isabel Ramil
Figurinos: Letícia Pinheiro e Isadora Fantin
Locuções: Alexandre Kumpinski

19 de dez. de 2010

A roupa nova do Rei

Foto: Jorge Scherer

Simples e ótimo

A montagem de A roupa nova do rei produzida pelo Grupo Farsa é daquelas peças infantis de que a gente vai se lembrar no futuro com saudades. E, talvez, quando lembrarmos dela, pensaremos que consiste na idealização do passado a grande quantidade de bons valores que a essa peça atribuímos. Não é. Os méritos do espetáculo são visíveis e consistem no resultado de uma avaliação criteriosa e concreta.

A excelência dos aspectos visuais não é novidade para quem está acostumado às direções (extremamente comportadas) de Gilberto Fonseca. Não há um só detalhe que esteja fora do lugar, que não esteja bem acabado, que não expresse formalmente o grande valor que o grupo dá ao público que lhe assiste. Cenário, figurino, adereços, maquiagem e trilha sonora estão perfeitamente articulados com a proposta da encenação, trazendo a ela os benefícios que lhes são seus: as cores fortes dos figurinos de uma história para crianças ambientada cenicamente num palácio, a máscara branca que encerra os personagens num campo imaginativo passível de várias contribuições a partir do repertório de cada um, os objetos de cena e o cenário bastante simples e práticos, que não poluem e estimulam o preenchimento da assistência, a trilha sonora que, além de dar o tom, contribui para a criação do ritmo e o fortalecimento das intenções, essas totalmente convergentes e dispostas dramaticamente.

As interpretações, tanto de modo geral como em casos específicos, atingem patamares que elevam o teatro para crianças que é feito na capital gaúcha. Não há destaques, porque todos estão muito bem. As nuances de voz de Marcos Chaves, que interpreta o Rei, se destacam se compararmos não o ator com os seus colegas de cena, mas esse elemento de sua performance com outros, como, por exemplo, a forma como o personagem dá a ver sua movimentação, suas intenções, seu crescimento. No mesmo sentido, poderíamos destacar a força do Ministro (Plínio Marcos) e ardilosidade do Conselheiro (Vinícius Meneguzzi), se compararmos a rápida identificação que esses dois personagens estabelecem com o público. Não se pode esquecer dos dois Artesãos (protagonistas e não coadjuvantes, como equivocadamente os categorizou o júri do Prêmio Tibicuera 2010), a esperteza de um (Lúcia Bendati) e inocência de outro (Ariane Guerra), dois replicantes que, em quase nada se afastam das duplas conhecidas como o João Grilo e o Chicó, o Pink e o Cérebro, o Gordo e o Magro, e tantas outras. É nitido que cada figura foi construída depois de uma intensa investigação sobre a possível riqueza de detalhes que o texto adaptado por Roberto Oliveira, do clássico publicado em 1837 pelo dinamarquês Hans Christian Andersen, oferece enquanto literatura. Incluindo ainda as figuras que aparecem rapidamente como candidatos ao cargo de costureiro real, não há, em nenhuma construção, a expressão de um só elemento cuja forma seja discordante com o todo. A roupa nova do Rei é um espetáculo excelentemente dramático e sua montagem deixa claro que quem é responsável por ela sabe exatamente o que está fazendo.

O resultado é o agradável entretenimento que faz rir crianças e adultos, nossa cidade e, espero, também outras. Faz repensar sobre o valor que damos à nossa própria inteligência e à força que a opinião alheia exerce sobre nós. Com os merecidos parabéns, o Grupo Farsa presenteia nossa cidade com um presente aparentemente simples, mas, em essência, resultado de vários desafios plenamente vencidos. Vale a pena ser visto e aplaudido e, não menos, recomendado.

*

Ficha técnica:

Direção: Gilberto Fonseca e João Pedro Madureira
Texto: Roberto Oliveira (a partir do conto de Hans Christian Andersen)
Elenco: Marcos Chaves, Ariane Guerra, Lúcia Bendati, Plínio Marcos Rodrigues e Vinícius Meneguzzi.
Figurino: Daniel Lion
Trilha sonora: Marcos Chaves
Cenário: Gilberto Fonseca e Grupo Farsa
Iluminação: Gilberto Fonseca
Maquiagem: Elison Couto
Produção: André Oliveira e Grupo Farsa

5 de dez. de 2010

Os melhores do ano 2010

O resultado oficial

Após os votos individuais terem recebido atenção, o grupo de jurados do Troféu Açorianos de Teatro Adulto 2010 assinou em unanimidade a lista dos seguintes indicados aos melhores do ano nas seguintes categorias:


MELHOR ILUMINAÇÃO
Bathista Freire (Sobre saltos de Scarpin)*
Carol Zimmer (Wonderland)
Claudia De Bem e Maurício Moura (Bodas de sangue)
João Carlos Dadico (O dia desmanchado)
Maurício Moura (Milkshakespeare)



MELHOR CENÁRIO
Elcio Rossini (Wonderland)
Luiz Marasca (Hybris)*
Jessé Oliveira e Grupo (O osso de Mor Lam)
Sylvia Moreira (Bodas de sangue)
Zao Figueiredo (Sobre saltos de Scarpin)

MELHOR TRILHA SONORA
4 Nazzo e Claudio Bonder (Hybris)
Arthur de Faria (Solos Trágicos)
Arthur de Faria (Wonderland)
Bebeto Alves (Milkshakespeare)
Jackson Zambelli e Sérgio Olivé (O dia desmanchado)*

MELHOR FIGURINO
Antônio Rabadan (A caravana da ilusão)
Daniel Lion (Sobre saltos de scarpin)
Daniel Lion (Wonderland)*
Juliana Kussler e Renata de Lélis (Milkshakespeare)
Rô Cortinhas (Bodas de sangue)

MELHOR ATRIZ COADJUVANTE
Luísa Herter (A lição)
Patrícia Soso (Parasitas)
Renata de Lélis (Milkshakespeare)*
Sandra Dani (Bodas de sangue)
Vika Schabbach (Bodas de sangue)

MELHOR ATOR COADJUVANTE
Daniel Colin (Wonderland)
Eduardo Mendonça (Milkshakespeare)*
Frederico Restori (Hybris)
Mauro Soares (Bodas de sangue)
William Martins (Sobre saltos de Scarpin)

MELHOR ATRIZ
Aurea Batista (Stand up drama)
Gisela Habeyche (5 tempos para a morte)
Patrícia Soso (Fora do ar)
Sandra Alencar (Adoração)
Vanise Carneiro (Nove mentiras sobre a verdade)*

MELHOR ATOR
Felipe de Paula (Milkshakespeare)
Leo Barisson (Fora do ar)
Luís Paulo Vasconcellos (O animal agonizante)
Marcelo Adams (A lição)
Marcelo Bulgarelli (O dia desmanchado)*

MEHOR DRAMATURGIA
Daniel Colin e Filipe Vieira de Galisteo (Wonderland)
Diones Camargo (Nove mentiras sobre a verdade)
Felipe Mônaco (Fora do ar)
Júlio Zanotta Vieira (Milkshakespeare)
Patrícia Fagundes (Clube do fracasso)*

MELHOR PRODUÇÃO
Fernando Zugno e Miguel Arcanjo Coronel (Bodas de sangue)
Morgana Kretzmann e Patrícia Fagundes (Clube do fracasso)
Rodrigo Marquez (Wonderland)*
Falos & Stercus (Hybris)
Cecília Daudt e Airton de Oliveira (Sobre saltos de Scarpin)

MELHOR DIREÇÃO
Daniel Colin (Wonderland ou o que M. Jackson encontrou lá)*
Camilo de Lélis (Milkshakespeare)
Luciano Alabarse (Bodas de sangue)
Patrícia Fagundes (Clube do fracasso)
Tainah Dadda (Sobre saltos de Scarpin)

MELHOR ESPETÁCULO
Bodas de sangue
Clube do fracasso
Milkshakespeare
O dia desmanchado
Wonderland ou o que M. Jackson encontrou lá*

A partir do momento em que eu assinei ata, a lista acima passou a ser a minha lista.
Envio os meus parabéns a todos os indicados, seus familiares e amigos. Parabéns aos patrocinadores e ao público de teatro de Porto Alegre! Saudações à Coordenação de Artes Cênicas e ao Grupo de Jurados deste ano, cuja árdua tarefa ainda não terminou.

* Vencedor do troféu de Melhor, segundo a opinião dos 10 jurados da comissão 2010. Resultado divulgado em Cerimônia Oficial no dia 17/12/2010. Mais informações aqui.

3 de dez. de 2010

Adoração


Foto: Luciana Mena Barreto

Desafios vencidos! Parabéns!

Há um vício de linguagem entre alguns atores que precisa ser evitado: o de utilizar a expressão textos literários como em oposição a textos dramáticos. Contos, romances, poesias, crônicas e textos dramáticos fazem parte da literatura e são, por isso, literários. Cada um deles tem as suas características, fazendo com que, dentro do seu bojo, se distanciem por esse ou aquele motivo. A boa literatura é dividida depois de lida e nunca antes de ser produzida. Logo, não é possível dizer sem margem de erro que o texto tal é dramático por isso e por aquilo e o outro não é. O mais apropriado é dizer que o texto tal se aproxima de outros textos dramáticos por esse motivo e por aquele. Com isso, abrimos a discussão de gênero textual para os novos textos dramáticos, esses sem rubricas ou com rubricas demais, esses sem nomes de personagens ou com confusão entre os nomes, esses sem diálogos ou os monólogos, esses que são apenas um roteiro de temas ou até mesmo as descrições imagéticas. Todos eles, a princípio, seriam considerados não-dramáticos com a preconceituosa desculpa de não se parecerem com um certo tipo de formatos eleitos (por uma determinada época e por um determinado número de pessoas).

Talvez um dos elementos que, de fato, ajudam na distinção de gênero seja a importância do drama, isto é, da ação, no texto. Aqueles tidos por dramáticos são todos os exemplares literários em que o drama tem uma importância maior do que os outros elementos. Existe drama em todos os gêneros, incluindo os romances e os contos. No entanto, neles, a descrição é auxiliada pelo drama e não o contrário. Assim, olhar um romance ou um conto do ponto de vista do drama significa repeneirá-lo: ficarão todos os signos que apontarem para a ação de forma mais e mais direta. O resto será descartado? Depende do responsável pela peneira.

Caco Coelho, muito sabiamente, não descartou nada de Nelson Rodrigues ao preparar a dramaturgia do espetáculo teatral Adoração. Ou quase nada. O resultado que saiu das suas mãos e foi parar nas mãos do diretor Beto Russo é esplêndido.

Como se deu o encontro entre os signos teatrais e os signos literários nesses textos, a princípio, não-dramáticos de Nelson Rodrigues? Através da voz. E aqui começamos a falar da colaboração entre o teatro e a literatura.

Todos sabemos que não existe jeito certo e jeito errado de produzir uma obra de arte. Mas dizer isso não significa que não possamos admitir que exista uma determinada combinação que traz um certo número de efeitos como conseqüência a guisa de outras combinações. E vai do espectador sentir-se mais confortável com determinados efeitos do que em outros. Eu me sinto confortável quando Nelson Rodrigues é interpretado através da encruzilhada estética personagens melodromáticos em contextos realistas-naturalistas. Para mim, é nesse encontro que os signos dispostos na obra desse importante escritor encontram maior potência, embora nada impeça alguém, um dia, misture Nelson Rodrigues com musical norte-americano, com cinema de suspense, com história em quadrinhos e sei lá eu mais o quê e com quais resultados. Por já ter assistido a algumas falas de Caco Coelho sobre o universo rodrigueano, eu sabia que ele sabia dessa possibilidade mais confortável. Eis que encontro o resultado: Beto Russo tornou a voz de Sandra Alencar nas estruturas firmes e sufocantes que o enredo realista naturalista precisa para ser, deixando o texto e as imagens que ele cria para assumirem sozinhos o que de meledromático falta para o melhor de Nelson Rodrigues se dar. A opção atinge o alvo plenamente e o espetáculo proporciona à assistência momentos de deleite com o texto, com o jeito como ele é dito,com as imagens que são motivadas, com os movimentos e as intenções que a atriz construiu e oferece.

Sandra Alencar está de branco e desenha uma Amarelinha no palco. Faz desenhos na parede, dança, corre, pára. Ela está única, mergulhada, imersa nas palavras, essas rainhas da literatura, mas que, no teatro, são meras subalternas. No teatro, o corpo, a presença física do ator é quem reina. E Sandra está plena. Cada novo tom oferece aos ouvintes assistentes novas carnes, novas cores, novas estruturas.

É certo que o ritmo cai em alguns momentos. Sendo teatro feito de ação, sustentá-la toda em mudanças de voz não é tarefa fácil de ser vencida sem dificuldades. Contudo, o resultado final é satisfatório, uma vez que os desafios vencidos eram altíssimos, o que garbosamente confere aos vencedores mais louvores por seus méritos.

Adoração, que une dois textos de Nelson Rodrigues, Uma menina foi para o céu, 1935; e A paixão religiosa de Maria Amélia (1930) é uma produção do Grupo dos Cinco que deve fazer Porto Alegre se orgulhar.


*

Ficha Técnica:

Autor: Nelson Rodrigues
Textos recolhidos por Caco Coelho no projeto de pesquisa 'O Baú de Nelson Rodrigues'.
Dramaturgista: Caco Coelho
Concepção e Direção: Beto Russo
Atuação: Sandra Alencar
Preparação vocal: Ligia Motta
Preparação corporal: Heloisa Bertoli
Figurino: Margarida Rache
Cabelos e maquiagem: Elison Couto
Iluminação: Fabricio Simões
Gravação da trilha: Leandro Nunes e Lucio Alves
Consultoria em Psicologia: Luciane Engel
Desing gráfico: Luiz Cagol
Fotografia: Luciana Mena Barreto e Claudio Etges
Assessoria de imprensa: Sandra Alencar
Assistência de palco e recepção: Cristiane Freitas e Patricia Soso
Produção: Beto Russo e Sandra Alencar
Realização: Grupo dos Cinco

2 de dez. de 2010

Hybris


Foto: Fernando Pires


Desmaterialização versus Supramaterialização


É fato que a sociedade em que vivemos é híbrida. Se, na antiguidade, as grandes guerras unificaram a Europa e a Ásia no Império Romano, as navegações da Renascença uniram a América e a África e, no início do século XX, todos choraram a morte da Rainha Vitória da Inglaterra, nada disso pode ser comparado à quase eliminação das distâncias promovida pela internet. Não houve, ao contrário do que se pode pensar, a perda da identidade, mas percebeu-se a própria identidade como uma construção não-subjetiva e bastante social. O que faz com que identifiquemos algo em alguém (ou em outro algo) nada mais é que o nosso repertório, esse adquirido através de outros algos e de outros alguéns no passado social de que fizemos parte. Hybris, novo espetáculo do Grupo Falos & Stercus, opera, enquanto objeto artístico, em vários campos ao mesmo tempo: é expressionista com seus painéis móveis, figurinos, figuras embassadas e alargadas que aparecem, principalmente no início. É surrealista quando mistura idiomas, subverte a horizontalidade e a verticalidade, promovendo formas diagonais e também circulares, num todo que desperta no público diversas possibilidades de sensações. É extremamente tradicional quando constrói personagens bastante rígidos: a filha, a mãe, o pai, o namorado. É inovador quando utiliza ferramentas advindas do circo: o risco físico do rapel, a bicicleta de uma roda só. É mofado quando coloca pessoas nuas a abraçar o público. É novo quando apresenta para muitas pessoas o quase abandonado Pavilhão Popular do Hipódromo do Cristal, um mundialmente conhecido projeto do arquiteto uruguaio Román Fresnedo Siri, em Porto Alegre.

Nesse universo de quebra de paradigmas, a negação das estruturas e a utilização de todas elas dá ao espetáculo uma base justamente híbrida e, por isso, bastante contemporânea. O grande valor da proposta é que o emprego dessa opção estética se dá pelo tema em questão: as relações do ponto de vista de suas origens e formas também híbridas. O desvalor, infelizmente constante tanto quanto o valor, está no fato da metáfora, que une a base ao tema, acabar, por fim, obtendo pouco espaço. O que, afinal, toma o lugar nobre do sentido nesse espetáculo, impedindo o espectador de realmente se sentir tomado pelo objeto?

As estruturas de comunicação aparecem demais, mais que o que é comunicado. Hybris é como uma frase em que, após cada parte, há um parêntese explicativo, dizendo “sujeito”, “predicado”, “adjunto adverbial”, etc. O leitor se perde no que a frase quer dizer tamanha é a quantidade de formas diferentes de dizer o dito de que ela se utiliza. E as formas, que já são um modo de dizer, apesar de concordar com o dito, sendo também híbrida, acaba por se perder. Se as linguagens têm uso misto nesse espetáculo, talvez o seja porque, por primeiro, assim é o ponto de vista dele sobre as relações: qual é o realmente o sentimento que temos uns pelos outros? O amor filial não se mistura com o sexual? Um homem pode deixar de ser homem ao ser pai? O amor materno até que ponto faz bem e até que ponto faz mal? O amor pode levar à morte? Essa fusão de conceitos e transformação deles em proposta de reflexão, em tudo, concorda e ganha cores fortes no grande universo comunicativo que Hybris recupera. Nisso, o grupo está de parabéns.

No entanto, nem todos os aspectos produzem relações tão coesas entre a base e o tema. Apresentarei alguns, sem espaço, nem pretensão para todos:

1) O texto é dito de forma dura pelo grupo de atores. De todos do elenco, o único que consegue um efeito de verdade no dizer as falas é Frederico Restori, que interpreta o personagem da criança. Essa opção estética, ao se diferenciar do contexto e ser, também ela, um elemento dessa hibridização, prejudica, atrapalhando a fruição do espectador;

2) O cenário com linhas amarradas, instalado no andar superior do espaço cênico, tem uma plasticidade que não é explorada pela cena que, nesse local, acontece.

3) É nítida a ideia de utilização de todo o ambiente do Pavilhão. Como conseqüência, o espectador é nutrido por uma vontade de ver onde será a próxima cena mais do que pelo interesse do que acontece nela. Em se tratando de uma história que se revela, aos poucos, em sentido crescente (A filha (Bia Noy) é estuprada pelo pai (Fábio Cunha), tendo uma relação problemática também com a mãe (Carla Cassapo) e outra com mais dois homens (Fábio Rangel e Jeremias Lopes). O conflito evolui na aproximação que a filha almeja com o pai, culminando na decepção dela diante do que conhece pela própria boca do seu algoz.), essa dispersão é prejudicial.

Dessa forma, o rico projeto de desmaterialização formal resultou, antes, numa supramaterialização. Felizmente, motivado a ir conhecer o trabalho desse grupo tão importante para o teatro gaúcho, o público encontra um espetáculo rico em possibilidades, esse resultado de uma pesquisa bastante séria, além de essencial as nossas artes, recebendo os merecidos aplausos por quem reconhece que só quem tem a coragem, a experiência e o poder de muito investir pode se dar ao luxo de também consideravelmente perder. E quem ganha, no fim das contas, são todos nós.


*

Ficha Técnica:

Direção e dramaturgia: Marcelo Restori
Elenco: Carla Cassapo, Fábio Cunha, Luciana Paz, Fábio Rangel, Alexandre Vargas e Jeremias Lopes, Bia Noy (atriz recém chegada de Paris, onde atuou por 5 anos), Fredericco Restori (ator mirim)
Bailarinas: Aline Karpinski (também coreógrafa), Iandra Cattani, Ju Rutkowski, Carol Dias e Fabi Martins
Coreografia: Aline Karpinski
Cenários e ambientações: Luiz Marasca.
Trilha especialmente composta: 4 Nazzo e Cláudio Bonder
Desenho de luz: Veridiana Matias
Elaboração de projeto: Alexandre Vargas
Ass. de produção; Elenice Zaltron
Preparação vocal: Marlene Goidanich
Maquiagem: Juliane Senna
Resp. pela prep. de rappel: Fábio Cunha
Videos: Coletivo Incosciente (Frederico Ruas.e Zeca Brito)
Fotos e arte: Fernando Pires
Figurinos: Daniel Lion
Produção, divulgação e realização: Falos & Stercus

28 de nov. de 2010

Tholl - imagem e sonho


Foto: Gabriel Olivera

Teatro em Tholl



Tholl – Imagem e sonho é um espetáculo de teatro-circo, como o próprio grupo o apresenta em seu site. Dessa forma, o interessante que uma análise como essa pretende ser consiste numa tentativa de identificar os elementos fronteiriços, o lugar das colaborações que acabam por contribuir tanto com um lado como com o outro. O conceito da semiótica de que teatro é quando A interpreta B diante de C cai por terra quando olhamos esse espetáculo. Nele, fica a pergunta: que B é esse que A interpreta para C?

Está claro que o espetáculo esforça-se ao máximo para encher os olhos: habilidades circenses todas empregadas otimamente, coreografias de dança desenhadas e expressas com um rigor em detalhes, dispostas ao público sem erros, exploração dos níveis e das profundidades, além, claro, de figurinos belíssimos. No entanto, mesmo cheios, os olhos estão vazios: Tholl – Imagem e sonho não conta nenhuma história, nem trata de nenhum tema. E como explicar um monte de significados em busca de significantes?

Sem utilizar nenhuma ferramenta deleuziana, a questão fica em torno da beleza do espetáculo, somente prejudicada pelo cenário, esse totalmente em desconexão com todos os outros elementos tão harmonicamente disponíveis aos olhos do espectador. Quase não há texto, há muitos movimentos e o excesso de cores e de diferenças sonoras na trilha aguçam os sentidos. A sucessão de quadros oferece à obra a coerência necessária para atingir público de todas as idades. Assim como as cores e os movimentos tem seus empregos carregados, as diversas situações ampliam o arsenal de possibilidades de Tholl – imagem e sonho.

Há três cenas em que a lente do teatro enxerga melhor alguns dos seus significantes na obra dispostos: a Enfermaria, Carmen e o “Circo”. As verbalizações existentes quase são incompreensíveis, o que contempla os não falantes de português (estrangeiros e crianças bem pequenas). No primeiro quadro, há três enfermeiras. Duas pessoas do público são chamadas a participar. Uma delas deita na maca e a outra serve de abajur. Deixando de lado o constrangimento que esse tipo de ação causa, principalmente, em quem aceita (de livre vontade) participar, o uso é uma forma de incluir o público no palco de maneira direta. Das três enfermeiras, uma delas chama bastante atenção, sendo que as outras assumem papel de coadjuvantes cênicos, embora não o sejam dramaturgicamente. Carmen é uma brincadeira em cima da ópera de Bizet, incluindo a participação de um touro e de Dom José. Dos três, o quadro do “Circo” é, talvez, o menos interessante. Gorilas e domadores entram e executam ações desconexas: perseguição, queda, danças, pulos e caminhadas. São esses três, é preciso que se diga, os momentos em que o público mais ri no espetáculo, deixando o êxtase para os momentos menos teatrais e mais circences ou extravangantes (aqui me refiro às extravanganzas, gênero teatral muito explorado em Nova Iorque, no início do século XX, tendo Florence Ziegfeld como seu maior expoente.).


Por que esses são os momentos mais teatrais? Há uma dramaturgia bem clara neles: há um início, um meio e um fim bastante definidos no interior de cada quadro. Além disso, os atores participantes desses momentos interpretam personagens de fácil identificação: uma enfermeira, um gorila, Dom José... A construção desses personagens agem no todo do quadro: as enfermeiras (bem como a narração over scenne que as apresenta) delimitam o espaço (uma enfermaria de hospital) e um tempo (contemporaneidade: saias curtas, corte do figurino, trilha sonora). Os outros também... Espanha no século XIX e um circo em algum lugar no espaço imaginário idealizado. Os elementos cênicos são potentes nesse conjunto dramático: uma maca confirma a enfermaria, os chifres deixam ver o touro, o chicote, os domadores. Cada todo tem em si a oposição que gera o conflito que gera o drama: Carmen se opõe a Dom José e ambos ao touro. As enfermeiras se opõem entre si e com o paciente. Os domadores aos gorilas. E as oposições se sucedem e se resolvem entre si: o paciente vai embora, Carmen fica com o touro, o circo se desfaz. Nenhum desses aspectos pode ser encontrado nos outros quadros. Há elementos de oposição (cima versus baixo, fundo versus frente, movimentos quadrados e movimentos circulares, etc), mas essa oposição não constrói um drama, um conflito que age em favor de um fim. A oposição visual aprofunda o quadro, enriquece a cena, mas nesse sentido é menos teatral é mais circense. O perigo, o desafio físico, o risco de vida são elementos das artes circenses e essas são muito exploradas nos outros momentos de Tholl: imagem e sonho. As figuras são personagens menos claros, mais híbridos. As situações são mais pantanosas e com estruturas menos perceptíveis. O teatro, nesses outros espaços, ocupa um lugar menor. E percebemos isso pelas vezes que em que ele ocupa maiores dimensões.

Com os olhos cheios, as pessoas saem do teatro em êxtase. De fato, é um espetáculo bastante interessante e que merece ser visto, sobretudo pelo profissionalismo expresso em quase todos os seus recursos.

*


Ficha técnica


O elenco de Tholl é formado pelos artistas:
Cassia Sanches
Deniel Santos
Douglas Paiva
Fábio Marques
Fernando Jurgina
Gabriela Sanchi
Gutto Rangel
Kátia Martins
Kleber Moreira
Lara Santos
Luana Wraque
Miriam Torres
Nicolas Rodrigues
Ricardo Bach
Rodri Aliandro
Tysso Rangel


As crianças:
Júlia Sacramento
Lucas Gallarça
Marina Weymar
Thomaz Santin


Concepção de Figurinos e Adereços - João Bachilli
Cenografia - Grupo Tholl
Cenografia Eletrônica - Bruno Fonseca
Criação e Técnico de luz - Betinho Cavalheiro
Operador de Áudio - Cristian Rodrigues
Contra-regras - Aline Silveira e João Luz
Assessoria de Comunicação - Amália Nogueira
Direção de Produção: Neuza Neves
Produção Executiva - Elaine Acosta
Assistência de Direção - Sandra Jorge

DIRETOR GERAL: JOÃO BACHILLI

Diretoria OPTC

Presidente: João Bachilli
Vice-presidente: Deniel Santos
Primeiro secretário: Adriane Silveira
Segundo secretário: Miriam Torres
Primeiro tesoureiro: Elaine Acosta
Segundo tesoureiro: Sandra Jorge

Conselho Fiscal Titular
Neuza Neves, Grazi Zanolla e João Luz

Conselho Fiscal Suplente
Nicolas Rodrigues, Kleber Moreira, Nina Souza

25 de nov. de 2010

5 tempos para a morte

Foto: Lutti Pereira


Natural

O espetáculo 5 tempos para a morte fala de morte de um jeito bastante simples. O maior valor da produção, sem dúvida, é a forma sensível e delicada com que a Usina do Trabalho do Ator apresenta o tema. Interessa aqui aquilo que está um passo após a definição do assunto a ser tratado num espetáculo criado coletivamente: o jeito como o tema será apresentado, exposto aos espectadores. Na plateia dessa peça, sente-se a sutileza bem empregada, necessária, vital na oxigenação do teatro gaúcho.

Como o grupo faz um espectador sentir isso?

Na forma lenta como a sucessão das cenas acontece. O ritmo não é parado, nem irregular: é lento mesmo. Isso faz com que muitas questões fiquem imanentes à espera pacientemente de trato. Uma vez que muitas ações não são contextualizadas, nem tem justificativa, o público fica na espera, mas não é convidado a desenvolver a ansiedade.

Como o grupo não convida o espectador para a ansiedade?

Nesse espetáculo, os atores olham para o público de rosto aberto, de cara limpa, mantendo um tom acolhedor. Nesse ponto de vista, a morte não faz mal, nem talvez faça bem, mas acontece e é natural. Não se corre a ela, nem se foge dela: mas sabe-se que ela virá um dia. “Numa cena, tudo será explicado!”

A produção não explica todas as formas de que se utiliza para existir no espaço/tempo cênico em que existe. Com isso, cria uma atmosfera gris, em que não sabemos ao certo onde estamos pisando, em que sentimos um certo desconforto, mas avançamos cheios de curiosidade. Celina Alcântara, Ciça Reckziegel, Dedy Ricardo, Gisela Habeyche e Thiago Pirajira contam suas histórias e nos acalentam nessa insegurança. Há uma canção, Marcha Rancho (Flávio Oliveira), que se repete, que marca os tempos para a morte, que define ou organiza o tempo da narrativa. Não há corre-corre, não há movimentos bruscos, nem desorganização. A direção de Gilberto Icle é limpa. Sua limpeza constrói um universo seguro.

Preparados pela célebre e competente Marlene Goidanich, o grupo de atores apresenta um excelente preparo vocal. Dime robadora que mereci é lindamente interpretada e aparece nos momentos mais sublimes da produção. São espaços de tempo que fogem do palco e fazem avançar o tema. É quando o palco pergunta pra plateia a sua opinião: os nossos pensamentos parecem responder.

Gisela Habeyche, provavelmente porque interpreta uma atriz e, por isso, tem uma identificação maior com o público e consigo mesma, apresenta uma construção que se destaca no todo da produção. Seu espanhol falado traz uma cor diferenciada para a personagem, um misto de graça e melancolia que enternece, principalmente quando ela conta histórias e confunde sua vida com elas. Há uma cena em que ela sola uma canção: é um momento imperdível! No jeito como olha, como canta, como se movimenta, a atriz sustenta uma figura cheia de força e energia que prende a atenção do espectador.

O cenário não acompanha os mesmos bons valores da produção. As caixas são pesadas e o esforço empregado para que se movimentem não compensam os resultados estéticos delas em cena. Acabam por ser lugares onde os personagens se escondem para, depois, reaparecer, representam a igreja e também ajudam a modificar o nível do lugar cênico, mas, mesmo assim, o transtorno que é seu movimento não supera o pouco interesse que elas despertam sobre si próprias.

Há outro espetáculo em Porto Alegre que versa sobre variações do mesmo tema. Ele também tem uma dramaturgia que é construída com a participação de histórias reais e inserções literárias. O interessante é ver esse tipo de teatro dissertativo acontecendo na capital de forma tão valorosa, competente e exemplar. O UTA, fundado em 1992, é um dos grupos mais importantes do Estado e é ótimo vê-lo respirando e fazendo sonhar com tão bons ares.

*

FICHA TÉCNICA
Elenco: Celina Alcântara, Ciça Reckziegel, Dedy Ricardo, Gisela Habeyche e Thiago Pirajira.
Direção: Gilberto Icle
Assistência de Direção: Shirley Rosário
Iluminação: Bathista Freire
Figurinos e Cenografia: Chico Machado
Acessórios Cênicos: Marco Fronckowiak e Maura Sobrosa
Músicas: Flavio Oliveira
Produção: Anna Fuão
Fotos: Claudio Etges

21 de nov. de 2010

Nove mentiras sobre a verdade


Foto: Renata Biglia

Isso é coisa de teatro

Num determinado momento de Nove mentiras sobre a verdade, Lara, a personagem interpretada por Vanise Carneiro, pergunta por que, afinal de contas, quando as espaçonaves explodem nos filmes, ouvimos o som da explosão se, como dizem os cientistas, o som não se propaga no vácuo. Na vida real, então, as explosões são silenciosas no espaço sideral, mas, nos filmes, é preciso haver o som para que o espectador reconheça e se identifique com a imagem. O som, no espaço, assim, é coisa de cinema. E, se sabemos o que é coisa de cinema, conseguimos saber o que é coisa de teatro?

Nove mentiras sobre a verdade é recheado de "coisas de teatro" e, pelos bons usos que faz delas, é um excelente espetáculo.

Outro dia, vi num blog um equivocado resultado de uma pesquisa interesseira sobre denegação. (Pesquisa interesseira é quando alguém se apropria de uma teoria de forma selvagem, isto é, descontextualizando o texto e o autor, recortando a fala e alterando o caráter final da ideia como uma forma de obrigar a reflexão a se curvar diante do que o pesquisador quer. É o interesse que move esse tipo de pesquisador e não a curiosidade científica infelizmente.) Consiste na capacidade dos elementos cênicos em atuarem de forma negativa no espetáculo teatral. Por forma negativa, não se entende algo de ruim em oposição a algo positivo ou bom. A negatividade aqui tem outro sentido.

Explico: num filme, numa fotografia ou num quadro, uma mesa nunca é uma mesa, mas é um algo que representa uma mesa, uma imagem, uma sombra, uma indicação. A mesa do mundo não-fictício tem valor positivo, porque a temos em nossa casa, nos sentamos a ela, nos servimos dela, podemos encostar nela. A mesa do cinema é uma imagem: ela aponta, ela representa, ela figura. A mesa do teatro, no entanto, é uma mesa igual a uma mesa do mundo não-teatro, mas ela tem valor negativo. Por quê? Porque o espectador não pode encostar nela, não pode sentar-se a ela, não pode servir-se dela, embora possa fazer tudo isso quando a peça termina. Denegação, assim, é um conceito teórico que não dá conta de mistura de gêneros e de concepção teatral, mas dos usos da linguagem teatral em relação a outras linguagens. Uma mesa no cinema aponta para uma mesa no mundo não-cinematográfico e para a mesa no contexto fabular do filme. Uma mesa no teatro aponta para uma mesa no mundo não-teatral, para uma mesa no mundo fabular da peça de que faz parte e, também, para si própria, já que ela é, de fato, uma mesa. A relação denegativa, assim, só acontece no teatro, porque é somente nesse exercício artístico que alguém interpreta alguém diante, ou na presença física, de outro alguém.

Ao entrarmos no teatro, encontramos um rapaz sentado sob um foco de frente para a plateia que, aos poucos, se enche. Ninguém fala com ele, ninguém o cumprimenta, ninguém acena ou interage. Todos reconhecem que, embora invisível, há uma barreira que negativiza a relação entre os dois lados. O rapaz sai e a cadeira fica vazia. Ninguém ocupa o lugar dele. Eis que chega Lara, a personagem. Ela, sim, senta na cadeira. A cadeira e Lara fazem parte do mundo teatral, do mundo fictício. Nós não. O que vemos, a partir daí, é Vanise Carneiro e uma cadeira, o tempo inteiro, trabalhando em cima da construção e da afirmação dessa relação: estou diante de ti, mas não sou feito da mesma matéria que você. Sob a luz, está o que é feito de ficção. Sob a escuridão, está o que é feito de realidade. Lá o negativo. Aqui o positivo. O conceito que dá conta de tudo o que torna o negativo em negativo é a denegação, ou, de forma mais ampla, a teatralização. E Nove mentiras sobre a verdade é prato cheio para uma reflexão nesse sentido.

O trabalho cênico a que se assiste é excepcional. Diones Camargo, mais uma vez, oferece ao teatro a sua literatura cheia de imagens, de profundidade, de força, de vínculos. Já é lugar comum dizer que ele, também autor de Teresa e o aquário, Parque de diversões e Peru, NY, é o dramaturgo gaúcho mais importante da atualidade. Lara chega num espaço quase vazio com uma mochila do Superman e, aos poucos, o público está diante de uma personagem atriz, de uma mãe, de uma esposa, de uma menina e seu pai. Vanise Carneiro surpreende todos aqueles que sempre a viram em papeis coadjuvantes, protagonizando majestosamente de forma bela e competente uma história cheia de personagens, de nuances, de lugares, de tempos e, sobretudo, de potências significativas nenhum um pouco enrijecidas. Sozinha em cena, sua força de grande atriz que mostra ser empurra a barreira da denegação por cima do público. Cada vez mais, nosso olhar, assim, se prende aos gestos, a sua palavra, as suas expressões. Ficamos dentro do mundo fictício ou, pelo menos, aparentemente. A concepção tão bem amarrada atua no sentido de também tornar grandes atores os objetos cênicos: o roteiro, o lenço, o gravador, os fósforos, a camiseta. Diferente do que muita gente pensa, diretor serve para dirigir e não para aparecer. E dirigir é dosar, é controlar a expressão, é harmonizar mesmo quando a intenção harmônica é a desarmonia, o que não é o caso aqui. Nesse sentido, Gilson Vargas, que assina a direção, atinge resultados bastante positivos: nada está desafinado em Nove mentiras sobre a verdade.

O trabalho de som, as projeções e a iluminação desse espetáculo merecem atenção especial: é raro identificar tão bons usos como é fácil nesse caso. Nunca de forma redundante, mas sempre de forma bastante rica, tanto um como o outro operam no sentido de promover novas significações sem que o espectador se sinta convidado a se afastar do mote estético que propõe a obra. Em outras palavras, Nove mentiras sobre a verdade providencia espaço para refletirmos acerca de muitas ideias, mas não sobre todas; imaginarmos muitos lugares, mas não todos. E a opção por um finito criativo ao invés de um infinito capcioso tem dois resultados diretos: 1) sabemos que quem faz (Vargas, Carneiro e Camargo, e sua equipe) faz bem; 2) diante desse bem, nos sentimos à vontade (e seguros) para fruir, para criar, para interagir e para tornar nossa a história de quem nos conta.

Aplaudir a obra ao mesmo tempo em que aplaudimos o artista é coisa de teatro. Que Nove mentiras sobre a verdade seja, assim, muito aplaudido e por muito tempo.

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Ficha Técnica:


Concepção: Vanise Carneiro, Diones Camargo e Gilson Vargas
Texto: Diones Camargo
Direção: Gilson Vargas
Atuação: Vanise Carneiro
Iluminação: Fernando Ochôa
Som: Gabriela Bervian
Trilha Original: Gabriela Bervian e Gilson Vargas
Cenário e Figurino: Teatro Líquido
Produção: Vanise Carneiro, Gilson Vargas e Duda Cardoso
Apoios: Lucas Gonçalves
Realização: Teatro Líquido

18 de nov. de 2010

Morgue

Foto: Vilmar Carvalho

Não devia ter sido produzido!

Prezado Oly Jr.,

Te escrevo porque gostaria de elogiar a tua participação no meu blog (ler os comentários de Oly Jr. na crítica de A lição). Não vou fazer uma reconstitução deles, mas quero citar o teu último em que me dizes, entre outras coisas, que a regra é um ato subjetivo. De fato, esse é um ponto de vista bastante interessante, porque suscita a teoria, a análise, a reflexão. Enquanto eu dizia que a percepção da regra é de responsabilidade do espectador ou do leitor, você vê a regra como uma manifestação da percepção, conclusão essa que me faz pensar e muito. São esses os momentos que mais me estimulam a continuar escrevendo: aqueles em que, ao trocar discordâncias, refletimos, crescemos, compartilhamos.

Seu primeiro comentário trouxe à baila uma crítica minha de um espetáculo dirigido por Bob Bahlis em que fui bastante claro ao dizer "Não deve ser visto!". Lembro que essa frase gerou uma série de discussões e alguns constragimentos. Cheguei a me arrepender dela, embora não me sentisse pessoalmente sincero com o arrependimento já que, de fato, era isso que eu pensava. Segundo você, um crítico jamais deve fazer isso, de forma alguma deve exortar as pessoas a não irem assistir a um espetáculo, o que significaria, na sua opinião, tolhir a construção do olhar alheio. Com as suas palavras, você diz que, se um crítico diz "Não vá ver essa peça!", ele está impedindo a pessoa de ter uma opinião seja ela igual ou diferente da sua. Eu discordei de você uma vez que ratifico a compreensão que eu tenho, essa construída na experiência deste blog, de que as pessoas 1) jamais confiam cegamente na opinião do crítico a ponto de abandonar o valor que dão as suas próprias; e 2) querem saber, afinal de contas, se o crítico recomenda ou não determinado espetáculo.

Diante disso, mas prometendo dizer ainda mais, sou taxativo em dizer que o espetáculo Morgue, dirigido pelo mesmo Bob Bahlis, não deve ser visto. E vou além: não deveria ter sido produzido e, muito menos, ter encontrado lugar num espaço público como é a Sala Álvaro Moreyra.

E, para que não digam que isso é um mero comentário (como se comentário fosse algo menor), vou avançar justificando o que acima eu disse.

TEMA: o mais grave de todos os defeitos dessa produção

Bob Bahlis e seu grupo de atores (Luciana Domicciano, Beto Mônaco, Fabio Monteiro e Marcelo Naz) empreendem seus esforços no socialmente desnecessário ato de cobrir um terço de uma hora ofendendo as mulheres e outros dois terços da mesma hora ofendendo os homossexuais (e não só os homossexuais, mas os homossexuais passivos). Contrói três personagens homens que se encontram após a morte numa sala de IML. Os três compartilham as suas vidas, os seus preconceitos e os valores. A proposta, a princípio interessante, lembra a cena cortada de Sunset Boulevard (O crepúsculo dos deuses), que começava com o Jornalista narrando sua própria morte. Mas o valor da proposta pára quando o público inteligente percebe que as piadas iniciais sobre gays e mulheres não ficam na ilustração (não tenho nada contra piadas quando elas têm apenas o valor de piadas), mas se estendem ininterruptamente por toda a duração da peça. Por mais que a dramaturgia termine por tratar as hipocrisias dos três homens, os três com relacionamentos homossexuais no passado, ao longo de todo o tempo, o que se vê é o público rindo da condição sexual homoafetiva. Ou melhor, dois terços, porque também se ri das mulheres, a partir das piadas machistas que são contadas.

Pois bem, um personagem homossexual, em hipótese alguma, deve estar ao lado de um personagem drogado ou de um padre que nao conseguiu realizar o voto de castidade. Os três mortos de Bob Bahlis são: um viciado em cocaína que morreu bêbado num acidente de moto matando outra pessoa. Esse viciado tem um filho de onze anos que é gay e ele mesmo assume que, quando criança, foi passivo numa relação homossexual. O segundo personagem é um padre que teve várias relações sexuais, uma delas com um amigo. O terceiro morreu esfaqueado por um garoto de programa. Ou seja, ocupando um espaço artístico público está uma peça que:

1) Desconsidera o fato de que ser homossexual é uma condição afetiva e não uma opção. Ninguém escolhe ser homossexual, tampouco heterossexual. Se é e ponto. A pessoa nasce assim e tem, ao longo de sua vida, o desafio de enfrentar o duro preconceito da própria família e da sociedade que lhe impede de, por exemplo, pegar na mão do seu parceiro na rua, gesto que qualquer adolescente heterossexual faz com sua namoradinha aos 12 anos sem problema algum.

2) Diferente do vício à droga, que pode ser curado ou, ao menos, tratado medicamente, o ato homoafetivo não pode ser curado, além de não ser responsabilidade de quem o faz, que não tem culpa de sentir-se atraído sexualmente por uma pessoa do mesmo gênero. Diferente da hipocrisia católico-cristã, em que padres, no mundo inteiro, pregam uma coisa e fazem outra, os homossexuais sofrem a hipocrisia alheia e, cada vez menos, se sentem encorajados a, diferente dos padres, dar continuidade à hipocrisia. Lembrando que o voto de castidade é uma opção do seminarista, que pode abandonar o curso se quiser, coisa que homossexual não pode fazer.

3) Na plateia, além de gays, possa haver familiares de homossexuais que, na maioria dos casos, sofrem bastante ao tomar conhecimento da condição sexual do filho, certos de toda a dura vida que terão que enfrentar a partir de se assumirem. Esses pais verão, no palco, pseudo-artistas debochando de seus filhos diante de um público que ri de suas piadas e lhes aplaude em pé.

4) O Brasil vive um momento político atual em que uma universidade paulista publica um manifesto pelo direito de ser preconceituosa, em que um grupo de homossexuais é agredido brutalmente a socos, pontapés e uma lâmpada florescente em plena Avenida Paulista, em que Grupos Neo-nazistas se espalham e em que a lei que proíbe qualquer manisfestação homofóbica não ganha a atenção dos deputados e senadores da República (Se o dono de um restaurante quiser expulsar dois homens que ficam de mãos dadas durante sua refeição, atualmente, ele tem esse direito.), o que é um absurdo.


A pegunta é: como alguém pode produzir um espetáculo que, por mais que termine "punindo" os personagens, promova uma hora de risos e gargalhadas vergonhosas e envergonhantes de uma plateia preconceituosa?

ASPECTOS ESTÉTICO-ARTÍSTICOS: menos pior, mas não menos ruim.

Os atores mantém suas construções de ruins a péssimas. Não é um espetáculo de teatro profissional uma vez que dispensa algumas das bases fundamentais da comédia que se propõe a fazer:

a) problemas sérios de dicção;

b) antecipam as ações o tempo inteiro (param de falar para a "enfermeira" entrar, anunciando a sua entrada); dizem que se assustam primeiro e se assustam depois; ao dizer uma piada, olham para o público para ver se a plateia ri; não têm ritmo (elemento essencial da comédia); o discurso, na maoria das vezes, soa como "decorado";...

Pode-se falar bem da atriz (Luciana Domicciano), cuja construção, assim como a direção de luz, embora com resultados positivos, ficam apagados diante de tantos problemas conceituais e operatórios no todo da produção.

Assim, caro Oly Jr., Morgue não deve ser visto, nem mesmo de graça. Presta um desserviço às artes e um desserviço à sociedade. Você quer que eu diga que essa é minha opinião aos meus leitores? Em lugar disso, vou te contar uma coisa:

Após o espetáculo, fui jantar com um amigo numa pizzaria da Cidade Baixa. Na saída, coloquei minha mão direita sobre ombro esquerdo dele, bem na esquina da Sarmento Leite com a Lima e Silva, antes de pegar o taxi para ir embora. Dois meninos passaram por nós e gritaram: "Ihhhh!!! Estão de casalzinho!!" E saíram rindo bem alto.

Rindo como riram aqueles que assistiram à Morgue. Rindo um riso que não deve ter lugar num mundo mais humano.


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Ficha Técnica:
Elenco: Luciana Domiciano, Beto Mônaco, Fabio Monteiro e Marcelo Naz.
Figurinos: Rô Cortinhas.
Cenário: Carlos Wladimirsky
Iluminação: Marga Ferreira.
Trilha: Bruno Suman

14 de nov. de 2010

Teatro de Rua de Porto Alegre

Algumas reflexões

Em 2009, o espetáculo de teatro de rua O amargo santo da purificação, da Tribo de Atuadores Ói Nóis Aqui Traveis ganhou como Melhor Espetáculo de Teatro Adulto do ano. Foi, sem dúvida, um grande momento na história do Teatro de Rua de Porto Alegre, movimento esse que, pelo que eu sei, se põe a discutir assuntos pertinentes ao seu fazer artístico, que é próprio, em uma rede de debates que integra vários grupos do estado e também de outros lugares do país. Meu intuito aqui é, em primeiro lugar, saudar esses artistas tão importantes para a oxigenação das artes cênicas na cidade, sempre levando teatro ao público de forma direta e plena. Em segundo lugar, contribuir com algumas reflexões que tenho feito acerca de sua produção. Em terceiro lugar, relatar alguns momentos desagradáveis que tenho tido com o Teatro de Rua, usando do meu direito de cidadão de reclamar, de cobrar, de fazer a minha parte para que haja um avanço, depois do reconhecimento público do ano anterior.

Sou jurado do Troféu Açorianos de Teatro Adulto de 2010. Sou crítico de teatro e tenho feito análises de espetáculos teatrais diversos, textos esses publicados nesse blog e em outros espaços virtuais e impressos. E meu lugar teórico é o da Semiótica Teatral, aporte conceitual que perdeu, nessa semana que passou, um dos seus maiores nomes, a pesquisadora Anne Übersfeld. Baseado em seus estudos, e nos estudos de outros pesquisadores de mesma linhagem (Ryngaert, Fischer, Pavis,...), para mim, teatro é:

Produção artística em que A interpreta B diante de C.

Nessa máxima, a relação entre A e B (ator e personagem) pode ser bastante distante (teatro clássico) ou bastante próxima (performance), envolvendo aí tudo o que possa ser dito sobre narrativa ou fábula, temática, formato, gênero. A relação entre B e C (público) promove discussões acerca da recepção teatral, da descodificação, da importância social, cultural, ideológica do teatro. A relação entre A e C permite refletir sobre a produção teatral, o aspecto econômico e social, as leis, os incentivos, os apoios, as parcerias, assim como a produção dramatúrgica e o envolvimento de outras artes no teatro. É a partir desse contexto que eu dirijo agora algumas perguntas ao Teatro de Rua de Porto Alegre sobre:

RELAÇÃO COM O PÚBLICO:

a) O Teatro de Rua assim é chamado porque abdica propositalmente de um lugar consagrado e invade um espaço que não é seu, mas que é público, que pode ser uma rua, uma praça, um mercado, um largo, uma orla, uma fábrica... Diferente do Teatro Que Não É De Rua, o público não sai de casa especialmente para vê-lo, mas é surpreendido pelo Grupo que, esse sim, saiu de casa para presenteá-lo. O Teatro de Rua invade um espaço que não é seu e torna transeuntes em público, em plateia. E esse tornar pode durar toda a duração do espetáculo ou apenas alguns minutos. Ou ainda um mero olhar. Diante disso, por que os espetáculos de Teatro de Rua de Porto Alegre são divulgados na mídia?

b) Sendo divulgados, por que não cumprem com a divulgação, ou seja, realmente se apresentam no lugar e na hora marcada?

c) Em caso de instabilidade climática, por que não mobilizam alguém para avisar o público de que a agenda não será cumprida?

d) Em Porto Alegre, acontecem espetáculos de Teatro de Rua em locais como Brique da Redenção e Usina do Gasômetro. Esses dois espaços são imensos. Em que lugar do Brique da Redenção? Em frente à Santa Terezinha? Em frente do Monumento ao Expedicionário? Próximo da João Pessoa? Próximo da Academia? Em que lugar na Usina? Perto do Cisne Branco? Perto da Elis Regina? No estacionamento?

Em suma, se o único público a ser considerado é aquele que foi pego por acaso, por que divulgar chamando aquelas pessoas que se organizam especialmente para ver um espetáculo agendado? E, se planejam privilegiar esse outro tipo de público, por que o desrespeitá-lo, fazendo com que a pessoa fique vagando por lugares públicos em busca de uma peça que ninguém sabe se vai realmente ocorrer em algum lugar?

Hoje (14/11) passei 30 minutos atrás do espetáculo Ao divagar se vai longe... . Semana passada, a mesma coisa atrás de O homem banda. Há alguns meses, o mesmo atrás de A caravana da ilusão. No ano passado, atrás de A noiva quer casar. E sei de gente que passou o mesmo atrás de outros espetáculos além desses. Se o C, ou seja, o público, faz parte do cerne do teatro, por que não valorizá-lo, não respeitá-lo, não facilitar as coisas para que ele possa estar presente?

ENCENAÇÃO:

a) A rua não é, como já se disse, um lugar privilegiado para o teatro. E, quando falo rua, não estou falando espaços teatrais a seu aberto como a Concha Acústica do Complexo Multipalco ou demais lugares sem telhado, mas especificamente preparados para o acontecimento teatral, com a providência de cadeiras e isolamento (Solos Trágicos e IntenCidade são dois espetáculos que aconteceram a céu aberto sem serem considerados, por isso, espetáculos de Teatro de Rua.). Ou seja, o espectador tem, a sua disposição, o espetáculo artístico, mas, também, o espetáculo natural: o pôr do sol, os carros, o movimento, os seus próprios compromissos, a imensa quantidade de coisas que acontecem durante a peça e em volta dela. Assim, por que alguns grupos se esforçam tanto em produzir um espetáculo cuja dramaturgia é tão complicada? Algumas peças a que tenho assistido já seriam difíceis dentro de uma sala fechada onde a concentração tem um lugar privlegiado. Muito mais difícil é ainda na rua. Linguagem rebuscada, grande uso de metáforas, requisição de repertório cultural raro, enfim, vários exercícios de expulsão da atenção ao invés de convergência. Por que não ser coerente com a sua própria proposta, enquanto gênero, e não levar para a rua a beleza da simplicidade, de uma boa história bem contada, de uma reflexão que democratize ao acesso ao debate? Cito os espetáculos do Grupo Oigalê como excelente exemplo disso. Também O vendedor de palavras, do Grupo Mototóti, A noiva quer casar, do Grupo Sarcáustico, e Sacra Folia, da Cia Stravaganza.

b) Sendo a rua um lugar não próprio para teatro, por que algumas produções são tão longas? Ficar em pé por mais de uma hora é muito cansativo e só aumenta a dispersão. Nem todo mundo gosta de sentar no chão e nem todo mundo anda pela rua munido de uma confortável cadeira de praia ou uma canga. Além da longa duração de alguns espetáculos, há um recurso interessante que é o de ficar mudando o espaço cênico, carregando o público consigo ao longo de um determinado parque ou rua. É rica a utilização de diferentes espaços para diferentes cenas, mas se a peça tem 40min. E não adianta em nada ficar discutindo sobre a quantidade de pessoas que conseguem prender sua atenção por tempos longos diante da era da televisão e da internet banda larga. Essa é a realidade que temos. Convém à produção, trabalhar com ela ao invés de ficar brigando com ela.

c) Para quantas pessoas o seu grupo faz Teatro de Rua? Para pequenos grupos ou para pequenas multidões? Ou grandes? Manter toda uma encenação para um grande número de pessoas no mesmo nível de lugar cênico só prejudica a visibilidade. Quem está atrás não vai enxergar nem ouvir o que está sendo dito. Menos ainda compreender... E o Teatro de Rua de Porto Alegre já é bastante adulto e já usou e abusou de várias técnicas que lhe são próprias para vencer esses desafios. Os novos grupos precisam estar atentos a esses avanços outrora obtidos e, às vezes, infelizmente esquecidos. Vale a pena ler a história da Terreira da Tribo, contada por Sandra Alencar, e o livro recentemente publicado por Jessé Oliveira sobre a história do Teatro de Rua em Porto Alegre.

GÊNERO:

a) Teatro de Rua é um gênero teatral, porque se pauta sobre questões diferentes de outros gêneros. Tem uma estrutura própria, necessidades próprias, linguagem própria. É um gênero disponível para hibridismos tanto quanto todos os outros, mas tem as suas idiossincrasias. Assim, por que não buscar algum reconhecimento que seja seu? Por que não haver um Troféu Açorianos de Teatro de Rua (que não precisa ser anual, mas poderia ser trienal ou bienal), já que, para avaliá-lo, é necessário todo um suporte teórico que é apenas na base puramente teatral?

b) Na rua, acontecem vários espetáculos artísticos. Mas Teatro de Rua é teatro e não é circo, não é espetáculo de música, nem show acrobático. O homem banda está inscrito no Troféu Açorianos 2010. É um equívoco. Não é um espetáculo teatral, embora haja uma certa teatralidade na sua produção. É um espetáculo de música e não deveria ter sido aceito pela Coordenação de Artes Cênicas, mas encaminhado ao Troféu Açorianos de Música. Nele, o teatro tem tanto lugar quanto, nos outros espetáculos, tem a música. O mesmo se pode dizer do circo e das artes acrobáticas. É espetáculo de teatro com acrobacias ou um show acrobático com um quê de teatral?



RELAÇÃO COM A SOCIEDADE


a)  O Movimento de Teatro de Rua de Porto Alegre merece ter garantido o seu direito de apresentação e esse com respeito. O que a sociedade, e aqui me dirijo para a Coordenação de Artes Cênicas de Porto Alegre e, por assim dizer, a Secretaria Municipal e Estadual de Cultura, faz por isso? Até quando o público da cidade vai ter que aplaudir os atores desse gênero teatral após passar vários minutos se esforçando para valorizar esses artistas em meio a shows grandiosos no Palco da Redenção (que é qualquer coisa menos um parque aos domingos) ou em meio a Homens do Gato, Índios Cantores, Vendedores Ambulantes com suas caixas de som e microfones? A liberdade de todos se expressarem precisa conviver com o direito de todos se expressarem em igual condições.

 b) O que a Coordenação de Artes Cênicas de Porto Alegre fez em relação ao Grupo Levanta Favela, levado à delegacia após ter seu espetáculo interrompido?

Em 2010, quatro espetáculos de Teatro de Rua concorrem ao troféu de Melhor Espetáculo do Ano. Só por isso a discussão já é pertinente. Fica aqui o registro de um movimento que, já orgulhosamente crescido, merece mais respeito da sociedade e de si próprio.

10 de nov. de 2010

A lição


Foto: Júlio Appel

Equívocos

Existe uma grande diferença entre uma produção equivocada e uma produção com equívocos. A primeira consiste naquela que agride o público e, consequentemente, a classe teatral/artística que do público vive. E a agressão pode vir pelo descaso ou pela má intenção. Descaso quando não houve pesquisa, estudo, aprofundamento. Má intenção quando o interesse real não é estético/artístico ou ideológico, mas outro qualquer. A lição, novo espetáculo da Cia. De Teatro Ao Quadrado é um exemplo da segunda. Há pesquisa e aprofundamento e o interesse é notoriamente artístico. Mas há muitos equívocos, ou, talvez, um só que seja responsável por todos os outros. Teatro do Absurdo e Hitchcock são opostos que não ocupam o mesmo lugar no espaço sem que ambos saiam prejudicados. Nisso consiste o grande equívoco aqui em questão.

Ao enfatizar o fato de que não há jeito correto de tornar teatro a literatura dramática de Eugène Ionesco (Romênia, 1909-1994), a atenção recai sobre o quanto A lição perdeu na sua aproximação com o Mestre do Suspense, Alfred Hitchcock (Inglaterra, 1899-1980).

Escrita em 1951, a história consiste no encontro entre uma aluna e um professor numa situação absurda. A Aluna é muito mais ágil, esperta e opinativa que o Professor,completamente frágil e submisso. A questão se torna ainda mais complexa quando, querendo participar de uma seleção para doutorado, a menina não consegue fazer operações simples como quatro menos três. O próprio exercício matemático, na lição, já sustenta uma ordem narrativa oposta, e não só alternativa, ao mundo além da ficcção. E essa ordem não permanece ao longo de sua duração, mas se modifica algumas vezes em outras direções. A Aluna se torna submissa e o Professor se torna um ditador. Ou, diante de sua Criada, o Professor, que acabou por assassinar sua Aluna a facadas, tem um comportamento infantilizado. Essas para citar apenas duas entre tantas alterações estruturais nas relações dispostas.

A história recomeça com a chegada de mais uma aluna, depois que o corpo da anterior é retirado. É o próprio Ionesco quem esclarece num vídeo, publicado no blog do grupo, que o aburdo não está dentro da narrativa, mas no olhar da recepção. Para a Criada, a morte de mais uma aluna é muito pouco além do normal, uma vez que 39 corpos estão a espera de sepultamento junto desta 40ª aluna que acabara de morrer. A Aluna, por sua vez, está convicta de poder passar na seleção não sabendo fazer corretamente operações matemáticas simples, embora saiba de coração todos os resultados possíveis, incluindo aqueles que envolvem quintilhões. O Professor, ao lembrar de um amigo seu que troca a letra F pela letra F, também está cônscio do engano cometido por ele, embora quem assista à história não veja nenhuma diferença entre F e F. A questão fundamental, então, está no fato de cogitar a possibilidade de uma mirada exterior à realidade que vivemos. Será que, estivéssemos fora desta vida, não acharíamos absurda toda a nossa realidade? Um homem louco matar milhões de pessoas, gente morrer de fome enquanto outros oferecem rações importadas aos seus cães, haver cirurgia de transplante total de rosto e não haver ainda cura para a AIDS e vacina contra o câncer... Nesse sentido, o Teatro do Absurdo continua tendo o que dizer mesmo sessenta anos após o lançamento de A cantora careca, texto do mesmo Ionesco.

Nos anos cinqüenta, Hitchcock já era um diretor de cinema bastante premiado. Seus primeiros filmes aconteceram nos anos 20 e os últimos na década de 70. Ionesco e ele, assim, são contemporâneos, mas artisticamente bastante divergentes. Não há, nos filmes desse cineasta, tapas, gritos e esfaqueamentos. O próprio sangue é raro. O pudor do diretor é alto e se converte no seu maior talento. Por isso, ele não é o Mestre do Terror, mas o Mestre do Suspense. E, nisso, está o ponto em que mais ele se distancia de Ionesco. Para Hitchcock, é fundamental que a história esteja firmemente amarrada para que, preso, o espectador fique submerso aos mandos do narrador até rastejar-lhe aos seus pés em busca de um fim que faça sentido. Quem assiste aos filmes de Suspense precisa saber como a história vai terminar, como o mistério vai se resolver. Porque é para essa resolução, para esse final aparecer, que tudo o que é posto na tela existe. Nem sempre, o final explica o filme, mas o final precisa ser satisfatório. O teatro de Ionesco, nem de longe, se fundamenta nisso. Ao contrário: a satisfação do público é do que ele foge.

O realismo para Hitchcock é condição necessária para seus filmes uma vez que a história precisa não deixar dúvidas. Ionesco dispensa o realismo: o Professor não necessariamente ensina, mas mata. A Aluna não necessariamente aprende, mas sabe. A Criada não é necessariamente uma serviçal. O punhal talvez não exista. O quadro negro e o giz não precisam aparecer, mas podem ser sugeridos. E não há história para entender: não sabemos quem é essa Aluna, quem é esse Professor. Se 39 alunas foram mortas anteriormente, como ainda ele não foi preso? E, havendo 39 corpos esperando por seus enterros, eles não estariam fétidos? Para um espectador de Hitchcock, isso é uma loucura, um absurdo.

A produção dirigida por Margarida Leoni Peixoto força uma relação entre A lição e Psicose. A personagem da Criada saiu de cena, dando lugar à Mãe do Professor, que vem a ser ele mesmo com direito à diálogos fora da cena em que Marcelo Adams muda de voz para cada persagem. O Professor e sua Mãe se tornam um só personagem na loucura final do Mestre que esfaqueia a Aluna após tê-la torturado brutalmente. O professor se torna, aos olhos do espetador, dessa forma, um louco, um doente. Os diálogos iniciais fazem, então, sentido no final quando entendemos que há um distúrbio mental em questão que justifica o aceite a uma aluna incapacitada e, também, a tortura, os gritos, os tapas, os chutes, as ofensas que vem na sequência. E, quando tudo faz sentido, a produção que almeja homenagear o Teatro do Absurdo acaba por ofendê-lo ou, ao menos, dele se distancia. O mundo não faz sentido para quem o vê de fora no teatro de Ionesco.

Luisa Herter está numa ótima interpretação como a Aluna. Opinativa, determinante, feliz, ela domina convenientemente o início do espetáculo. Sua ação submerge, também adequadamente, quando o Professor começa a crescer. Marcelo Adams, no entanto, embora muito bem no início, não sustenta as qualidades até o fim. É, no fim, que a concepção de Peixoto não valoriza nem Ionesco, nem Hitchcook, isto concretizado nas ações de Adams. O ator grita estridentemente num teatro pequeno (Teatro de Arena) a ponto de nos fazer ter vontades de fechar os ouvidos de tão irritante que é. Cria-se uma sensação de sufocamento, que também não faz parte, de forma contribuitiva, nem para o Absurdo, nem para o Suspense. Também incomoda bastante o espancamento da Aluna, deixando o espectador ter dúvidas se o que vê não faz parte de um espetáculo mais sadomasoquista que artístico. Além disso, Psicose é um filme tão simbólico que a relação entre a Mãe e o Filho apontam para o desfecho de um jeito claro demais de forma que, desde o início, já sabemos o que acontecerá no fim. O mal disso está no fato de que, para o Absurdo, não há uma relação de causa e conseqüência que valorize o início como uma preparação para o fim. Nesse gênero, o fim, o meio e o início são tão importantes que poderíamos inverter a lógica sem desacréscimo. Na produção da Cia. De Teatro Ao Quadrado, isto é impossível, uma vez que o Professor construído por Adams está assustado diante do crime, enquanto que o sugerido por Ionesco não sente susto mais que outras reações. No texto original, há, até mesmo, o alerta do Mestre de que não se gaste muito no enterro da aluna recém morta, porque ela não pagou a lição, o que mostra que susto, pavor, contentamento, frieza, e outras, são reações sem níveis de importância e que se alternam. Em Ionesco, nesse sentido, sempre que um personagem se define, imediatamente depois, ele se indefine. O Teatro do Absurdo é, afinal, uma reação oposta ao Estruturalismo e, por sua vez, ao Formalismo. Daí que, embora com figurinos bem cuidados, um cenário bastante rico, uma iluminação cheia de propostas interessantes, a concepção que aproxima essa produção do suspense faz todos os acertos naufragarem nesse grande equívoco. O que é uma pena.



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Ficha técnica:
Texto: EUGÈNE IONESCO
Direção: MARGARIDA LEONI PEIXOTO
Elenco: MARCELO ADAMS e LUÍSA HERTER
Cenografia: ZOÉ DEGANI
Figurinos: RÔ CORTINHAS
Iluminação: FERNANDO OCHÔA
Trilha sonora: MOYSÉS LOPES e OLY JR.
Fotografias: JÚLIO APPEL
Projeto gráfico: DÍDI JUCÁ
Divulgação: BEBÊ BAUMGARTEN
Bilheteria: RENATA SAVARIS
Produção e realização: CIA. DE TEATRO AO QUADRADO

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