2 de out. de 2009

Fando e Lis

Foto: Betânia Dutra

Além do mundo

Entre as coisas que aprendi nos meus relacionamentos está a de que só as duas pessoas que se relacionam sabem sobre o que acontece entre elas. Mais ninguém. Palpites, previsões, teorias podem ser bem-vindas. Até interessantes. Mas nem sempre úteis. Em "Fando e Lis" (1955), do espanhol Fernando Arrabal (1932), o espectador da peça, como também o dos relacionamentos alheios, é lembrado de sua passividade com um dedo apontado, em riste, e com um olhar bem firme do autor que parece avisar: “Não se meta! – mesmo tendo sido chamado”.

Não sei quanto aos leitores, mas eu fiquei o tempo inteiro da assistência me dando conta de que eu sou absolutamente incapaz de dizer algo, mesmo que quisesse, sobre o amor de Fando e de Lis. Não é como quando dois amigos se curtem e brigam e você, por conhecê-los, mas principalmente pela mania horrorosa de se pôr no lugar alheio, fica dissertando, apontando caminhos, metendo o bedelhão. Arrabal deu a Fando e a Lis características que, até hoje, nunca encontrei em ninguém nesse grau de exagero. Sua excelência artística consiste justamente em aumentar à vertigem as cores da realidade para que a moldura caiba num museu de arte e não num supermercado. Fando e Lis existem em potência na vida real, entre nós, conosco. Como Arrabal os materializou, felizmente, nunca os vi.

A passividade do espectador está imposta pelas atitudes amorais dos dois. Não nos é dado nenhum recurso para julgar a brutalidade com que Fando trata Lis. Tampouco a brutalidade com que Lis se permite ser tratada por Fando, no recorte a que assistimos dessa história que começa antes da peça e que vai além do seu final. Os personagens não têm idade, não vivem num tempo e nem num espaço definido. As histórias giram como também giram os dois protagonistas, sempre voltando ao mesmo ponto. O final, por mais trágico que pareça, fica com um gosto de evento: como se Lis fosse acordar e as coisas continuarem como estavam. Ela não volta a andar após ficar paralítica e nem retornará do fim para o qual correu. Fando não é mau. Fando não é bom. Fando e Lis estão além do nosso mundo.

A versão encabeçada pelo “Teatro Porcos com Asas” é bem-vinda e foi, no Espaço Ox do Ocidente (o lugar mais abandonado, com o pior atendimento, sem uma infra-estrutura adequada, mas, mesmo assim, com o ingresso de festa mais caro da cidade!), muito aplaudida. É louvável que esse texto aconteça entre nós e que sejamos convidados a nos aproximar de Arrabal, escritor cujas palavras são tão valiosas para enfrentar o mundo atual e seus desafios. Falta, no entanto, uma direção que dê a essa produção base para estar a altura da literatura desse dramaturgo. O espetáculo carece de unidade.

Os personagens foram construídos pelos atores de forma muito díspare. Di Machado (Fando) propõe várias possibilidades de jogos cênicos para Manoela Wunderlich (Lis) que não lhe corresponde. Mesmo com um corpo disponível à elasticidade da personagem, Wunderlich está longe de responder às expectativas exigidas pelo seu talentoso parceiro. A atriz não varia de expressões, mantém a mesma energia em quase a totalidade da narrativa, não propõe curvas a sua história, não interage. Fando fica sozinho em cena junto dela e, uma vez que seu personagem depende das variações de Lis, só resta a Machado empobrecer-se de significados. Há um momento no texto, para citar um exemplo, em que Lis fica sem falar para o desespero de Fando. A atriz dá a cena uma feição fria, distante que seria apropriada se essa já não tivesse sido a feição dada a outros momentos desde o início: a frieza não se sobressai. Nada de novo acontece em Lis, obrigando Fando a retirar de si a novidade que lhe deveria impulsionar. E não lhe impulsiona.

A peça cresce com a entrada de Isandria Fermiano (Namur), Martina Frölich (Mitaro) e Vivi Schames (Toso), personagens que vêm dialogar com Fando, sem nenhuma outra função dramarturgica. As três são partes de si que Fando de Arrabal busca no outro, compõem a intimidade desse personagem sem segredos que não seus próprios sonhos, dúvidas, brabezas. Elas, as personagens, não dividem o mesmo espaço de Lis, não pertencem ao universo dela, como também Fando não chega compreender sua amiga. A dramaturgia surrelista decompõe o ser em partes de si, fazendo com que nós possamos interagir, na arte, conosco mesmo. O diálogo entre Namur e Mitaro é o mais bem construído trecho dessa produção cuja direção é assinada pelo intérprete de Fando, Di Machado. As ótimas Fermino e Frölich dão ao texto a energia que falta nos protagonistas: a vivacidade do olhar, a intenção expressa em corpo, a possibilidade e o convite. A dupla chama a atenção, ofusca a narrativa, engrandece a obra, a guisa do que acontece no outro núcleo.

A luz e o figurino não concordam também. Enquanto a vestimenta e todos os elementos cênicos tendem a deixar a proposta mais interessante, a luz, quase sempre geral, pouco acrescenta, talvez pela escassez de recursos (e boa vontade, e por que não?, decência) dos proprietários. O mesmo se diz do ritmo que cai terrivelmente já na leitura de Arrabal em alguns momentos, mas cresce com cenas fortes como chegada de Fando com um coração e o encerramento com morte da boneca, sendo esses altos e baixos constantes e nem sempre de acordo com as intenções da concepção mais um exemplo da falta de unidade apontada no início nesse belo, enfim, trabalho.

Um dos símbolos usados e que destacam a força dessa montagem nada amarrada é o isqueiro sem gás. Mil coisas poderiam ser ditas sobre esse recurso e a boa forma como ele é usado em cena. Mas prefiro encerrar lembrando que só Fando e só Lis sabem o que exatamente esse brinquedo simboliza. E ambos estão além.

*

Texto: Fernando Arrabal
Direção: Di Machado
Elenco:
Di Machado
Manoela Wunderlich
Isandria Fermiano
Martina Fröhlich
Vivi Schames

Trilha Sonora ao vivo: Haroldo Paraguassú e Stéfanis Caiaffo
Orientação: Irion Nolasco
Preparação corporal: Carlos Gontijo
Figurinos: Betina Guedes
Tradução: Edson Roig Maciel
Produção Audiovisual: Haroldo Paraguassú, Stéfanis Caiaffo e Di Machado


4 Comentários:

Marcelo Ádams disse...

Tenho uma versão para cinema de "Fando e Lis", dirigida por Alejandro Jodorowski, diretor chileno, em 1968. É um delírio visual.

Rodrigo Monteiro disse...

Eu já assisti!! Mas gosto mais do Santa Sangre, do Jodorowski também. Tenho esse em casa.

Anônimo disse...

Lembro de uma vez ter lido no teu blog que não irias mais comentar peças do DAD, Novas Caras e afins por se tratar apenas de trabalhos fora do circuito. Que irias criticar, a bel prazer do teu ego, peças do circuito ditas como profissionais. Mudaste de opinião?

Rodrigo Monteiro disse...

Olá, Anônimo!

Nunca escrevi nada parecido com isso nem aqui, nem em outro lugar.

Mas vou aproveitar a oportunidade agora:

Nesse blog, não entrarão críticas de espetáculos que tenham sido assistidos por mim em ocasião de trabalho de conclusão de graduação em artes cênicas. Daí porque não escrevi, por exemplo, sobre "Em trânsito", de Sissi Venturin e Lisandro Bellotto.

Obrigado!

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